Leituras 17: Don Marquito, o teórico cidadão de Muyurina

Moisés Aguiar


Agosto de 1996, III Encontro Latino-americano de Psicodrama. Muyurina, sede do evento, é um campus universitário localizado em Montero (a “capital” da comercialização da cocaína na Bolívia), próximo de Santa Cruz de la Sierra. 

São poucos os profissionais presentes: algo estranho aconteceu, que a mobilização ficou longe do mínimo desejável. Os que participaram, entretanto, estavam muito unidos e empenhados em garantir qualidade, o que acabou acontecendo. 

Teatro espontâneo.

O protagonista é Marquito, o teórico, estranho morador de uma pequena cidade, aonde se recolhera como projeto de vida. Filósofo “sartriano”, preenche seus dias de intelectualóide bajulando ditadores e servindo-lhes parceiras de aventura sexual, garotas menores por ele mesmo corrompidas. Sua mulher é Simone, réplica ao avesso da famosa escritora francesa, Simone de Beauvoir: machista, dependente, intelectualmente limitada, subserviente. 

Intrigante síntese do Encontro. 

Os profissionais que se deslocaram até Santa Cruz, atendendo à convocação para o conclave, se viram, surpresos e estupefatos, inseridos num contexto por todos os títulos insólito: um retiro espiritual, como os que se realizam todos os anos, promovido pelo departamento de psicologia da Universidade Evangélica da Bolívia, com frequência obrigatória para os alunos da área. 

Do programa constavam trabalhos psicoterápicos -vivências psicodramáticas – intensivos, tendo como base os grupos terapêuticos que funcionam regularmente na Universidade, como exigência acadêmica, naquele momento recheado com visitantes e dirigidos não pelos terapeutas de rotina, mas por psicodramatistas que vinham participar do Encontro. 

Todo o clima do evento era religioso. A abertura solene se deu com leitura bíblica e oração. Um hino evangélico era o bordão de cada passo do programa. Orava-se às refeições, mesmo quando faziam parte das atividades sociais, em restaurantes. A vivência com maior status dentro da programação foi um bibliodrama épico, em que se celebraram as virtudes religiosas de Ester, personagem central do livro bíblico que leva seu nome. 

Para os estrangeiros, a situação era tão inusitada, que despertava, ao mesmo tempo, curiosidade e indignação, respeito e 1 repulsa, amor e ódio. Personagens de Camus. (1)

(1) Remeto-me a “O estrangeiro”

O teatro espontâneo lhes foi, entretanto, extremamente revelador e catártico. 

A questão do marco teórico

Numa das ocasiões em que foi possível processar, ainda que sem grande aprofundamento, o trabalho que se vinha desenvolvendo em Muyurina, circulou a tese de que eventuais divergências quando aos procedimentos ditos psicodramáticos tinham a ver com o marco teórico que consubstanciava as diferentes posições. 

A partir daí, era como se nada mais pudesse ser discutido ou questionado. No caso específico, o bibliodrama se desenrolara num clima de pregação religiosa, porque para os colegas que o dirigiram a Bíblia é a palavra de Deus, o que justifica todos os esforços para tentar compreendê-la e aplicá-la à vida cotidiana. 

O texto bíblico, insuscetível a qualquer esforço de re-criação, jamais poderia, por isso mesmo, ser tomado da mesma forma com que se tomam notícias de jornais, quando se trabalha com jornal vivo, em que a partir do texto nuclear se constrói uma nova estória, da qual esse texto representa um mero inspirador. 

De acordo com esse “marco teórico”, não se autoriza nem mesmo o bibliodrama que se vale de trechos da Bíblia como ferramenta no trabalho com conflitos de natureza religiosa ou espiritual, como o fazem bibliodramatistas mundo afora. 

Isso para não falar do abismo que separa esse enfoque daquele utilizado por psicodramatistas que nem sequer conhecem o bibliodrama, até porque conferem a sua atividade profissional um caráter laico. 

O espanto causado pela atuação dos colegas bolivianos – não todos, é bom que se ressalve, porque vários deles fizeram questão de assinalar sua discordância em relação ao que faziam seus líderes institucionais – aciona uma reflexão extremamente difícil, cujo cerne é a questão da identidade do psicodrama. 

Com efeito, sob esse amplo guarda-chuva abrigam-se as mais diferentes práticas, fundamentadas nas mais diversas concepções teóricas e, mais grave ainda, em visões de mundo radicalmente opostas.

Debater esse tema não significa tentar definir com quem está a verdade. Ou seja, não se cotejam posições para alcançar o melhor veredito sobre quem está ou não está certo. A tolerância e a generosidade são condições° sine qua non para qualquer exercício teórico que se preze como conseqüente. 

Mesmo quando, em Muyurina, surgiam sentimentos de revolta contra o que se afigurava como uso manipulatório do psicodrama, para fazer proselitismo religioso, o mormaço cedia ao frescor da brisa anarquista que sopra sempre para esfriar cabeças quentes, lembrando-as de que a presunção de ser o detentor exclusivo da verdade está na raiz de todas as tiranias – inclusive a nossa! 

A mente aberta não evita, entretanto, o desconforto ligado à identidade, quando um determinado trabalho do qual visceralmente discordamos é caracterizado como semelhante ao nosso. 

Umberto Ecco (2) usa uma figura muito interessante para analisar um fenômeno similar, os diferentes tipos de fascismo. Quatro posicionamentos políticos guardam entre si algumas semelhanças, que poderiam ser representadas pelo quadro abaixo, em que as letras designam conteúdos político-filosóficos:

(2) Totalitarisme fuzzy’et fascisme éternel”. In Magazine Littéraire, n.342, avril 1996, pp.149-160

Posição 1Posição 2Posição 3Posição 4
ABCBCDCDEDEF

Na medida em que as posições 1 e 2 guardam entre si dois pontos de semelhança (“B” e “C”), as posições 2 e 3, idem (“C” e “D”) e assim por diante, todas essas posições são consideradas semelhantes entre si, enquadradas na mesma categoria (air de famille ). A rigor, entretanto, as posições 1 e 4 nada têm em comum, senão o vínculo indireto, mediado pelas posições 2 e 3. 

Numa outra analogia, quando se deseja estabelecer a relação de consangüinidade existente entre duas pessoas não basta considerar se têm ou não o mesmo sobrenome, nem se possuem uma história familiar comum. Um mesmo sobrenome nem sempre significa uma mesma genealogia, nem sobrenomes diferentes genealogias distintas. Assim como duas crianças que sejam criadas debaixo do mesmo teto, chamando os mesmos adultos de papai e mamãe, por estes criadas e amadas, podem não ter nascido do mesmo ventre. E o mais curioso é que com toda sofisticação da ciência contemporânea, os exames quimiogenéticos, como o DNA, são decisivos apenas para excluir, nunca para incluir, ou seja apenas negam hipóteses de consangüinidade, nunca as afirmam. 

Quão difícil não é, assim, estabelecer linhas de parentesco confiáveis e confortáveis quando se trata de orientações técnico-teóricas em psicoterapia, principalmente no que tange ao psicodrama, tendo em vista que uma das características que lhe atribuiu seu criador foi exatamente a de funcionar como um corpo ao qual se agrega tudo o que se quiser agregar. Mesmo correndo o risco de, em nome da generosidade, o organismo hospedeiro seja asfixiado pelo parasita. 

É portanto indispensável que a questão dos diferentes marcos teóricos não seja enfrentada com indulgência leviana, a pretexto de se favorecer o congraçamento e a tolerância mútua. 

A rigor, passar por cima das diferenças significa negar o seu significado, o que nada mais é do que fazer pouco do outro que pretendemos acolher, transmitindo-lhe a mensagem sutil de que o que ele pensa e considera determinante não tem a menor relevância. Conseqúentemente, também estamos dizendo que o que fundamenta nosso próprio trabalho não é coisa que deva ser levada muito a sério – e com certeza essa atitude vai ter uma tradução na seriedade com que encaramos nosso labor. 

Discutindo as diferenças 

As diferenças devem, pois, ser discutidas à exaustão. Com respeito e tolerância, sem dúvida, porém com firmeza e seriedade. Só assim poderemos evitar surpresas como as de Muyurina. 

Para viabilizar essa discussão, ensejando sua fertilidade, devemos entretanto prestar atenção, em primeiro lugar, à natureza dos conteúdos sub judice: sem cuidarmos dessa diferenciação, corremos o risco de despendermos enorme quantidade de energias, sem que desse empenho resulte nenhum avanço.

O dogma

Buber (3) nos ensinou que o que ele chama de relação (Eu-Tu) é insuscetível de ser traduzido em palavras. Ou seja, por mais que tentemos explicar um encontro que vivenciamos, nossos recursos serão sempre insuficientes, porque se trata de algo singular, pessoal e intransferível.

(3) Buber, M.: Eu e Tu. Cortez e Moraes, S.Paulo, 2a. ed., 1979. 

Por definição, para que se caracterize uma relação o eu não pode cindir-se num eu que vivencia e outro eu que observa. Só depois que o encontro se desfaz é que pode haver uma tentativa de descrevê-lo. Estamos, então, já no âmbito do Eu-Isso, quando o encontro em pauta se constitui no Isso, do qual o Eu se distancia, para poder descrever.

Toda afirmação que se faça a respeito do vivenciado será portanto parcial e imperfeita, respaldada por uma ocorrência inefável sobre a qual se pretende falar.

Essa é a origem dos dogmas: são afirmações de caráter definitivo, ainda que eivadas de pelo menos aparentes imperfeições lógicas e semânticas, que não podem ser discutidas de igual para igual, porque o – interlocutor não tem acesso à fonte do saber que as fundamenta.

Mesmo que se consiga identificar alguma semelhança entre vivências dessa natureza – chamadas também de experiências de fé – tal identificação se baseia numa tentativa de codificar o incodificável.

Começam aí as irreconciliáveis divergências teológicas, até mesmo porque toda teologia é por princípio uma heresia epistemológica: uma tentativa de aprisionar o infinito na finitude conceitual.

As discussões religiosas costumam ser estéreis exatamente por causa disso: ou se cotejam vivências absolutas e incomunicáveis e aí tudo que se fale é absurdo, ou então se comparam elaborações feitas a partir da tentativa de comunicar ditas vivências, o que distancia ainda mais a formulação de sua fonte alimentadora.

Na experiência de Muyurina, não há como contrapor a crença de que a Bíblia é a palavra de Deus – uma convicção de fé – a uma outra que diga qualquer coisa diferente, a partir da não-fé. O máximo que se pode fazer é uma parte ouvir a outra, para poder alcançar o cume possível de esclarecimento quanto às respectivas posições.

Dogma não se discute. Suas consequências, talvez sim, como veremos logo mais. 

O postulado

É diferente o dogma do postulado. Este é também uma afirmação que estabelece discricionariamente um princípio, insuscetível de ser provado cientificamente, assim como o dogma.

Só que não tem a pretensão de traduzir uma experiência singular que o validaria e o tornaria definitivo. É assim porque quem o afirma preferiu esse princípio a outro, dentro da sua liberdade de escolher e da necessidade de fazê-lo. 

No entanto, esse princípio, assim como o dogma, condiciona tudo o que vem depois. O que se segue a ele só pode ser compreendido à luz dele.

No caso dos paradigmas, por exemplo, define-se uma concepção básica, um caminho genérico, um ponto de partida, um ângulo de visão, cuja aplicabiblidade transcende, em princípio, o objeto específico do conhecimento que se pretende alcançar.

Com essa definição, a busca da experiência e do saber deixa de ser errática, uma vez que os pontos cardeais, conhecidos, ajudam a localizar a direção em que se caminha.

O paradigma é, na verdade, uma convenção, ou seja, um critério que se acorda a priori, da mesma forma que se estabeleceu que o oriente é o lado onde nasce o sol, sendo o seu oposto o ocidente, o norte à frente, se se coloca o oriente à direita e o sul no polo contrário.

Como convenção, pode ser rejeitada sem maiores justificativas – conquanto seja habitual que o rejeitador não apenas explique sua opção como tente convencer de que a alternativa que oferece é muito melhor. No entanto, não pode ser desconsiderada se se pretende efetivamente compreender metodologias e produtos.

O mesmo acontece com os objetos da ciência. Nada pode obrigar alguém a investigar uma determinada área quando seu interesse está voltado para outra.

No campo psicodramático, essa questão é pungente: a tradição psicoterápica exige, de certa forma, a pesquisa dos processos chamados intrapsíquicos, quando não especificamente o inconsciente individual; no entanto, a estrutura teórica e os procedimentos técnicos do psicodrama foram estabelecidos para pesquisar relações intragrupais.

Aqueles que pretendem utilizar a teoria e os procedimentos técnicos do psicodrama para uma psicoterapia convencional deparam-se, necessariamente, com a sensação/conclusão de que o psicodrama não lhes oferece a base de que necessitam, razão pela qual vão buscá-las em outros fornecedores.

Curiosamente, a evolução do pensamento psicodramático revela uma tendência à superação .dessa dicotomia, o que configura exigências metodológicas ainda mais diferenciadas.

O trato com os postulados, portanto, exige uma clareza quanto às suas consequências e é aí que se situa o foco das discussões, se se pretende ir além do esclarecimento quanto à escolha feita pelos respectivos interlocutores. 

As formulações hipotéticas 

Se o dogma diz respeito a um conhecimento absolutamente personalizado, verdade absoluta para quem o afirma, enquanto o postulado representa a escolha discricionária de uma direção a seguir, as formulações hipotéticas constituem, na estratégia de busca da experiência e do conhecimento, os aspectos mais suscetíveis à contestação e à modificação, a partir da verificação empírica.

Consideramos formulações hipotéticas não apenas as tradicionais hipóteses científicas (proposições a serem aferidas pelo método experimental), mas também as teorias, os conceitos e os sistemas conceituais.

O conceito localiza e define um dado fenômeno, enquanto que os sistemas conceituais dizem respeito à articulação intrínseca dos diferentes conceitos. As hipóteses, em sentido estrito, descrevem as condições em que ocorrem os fenômenos conceituados; o conjunto de hipóteses, em suas articulações, constituem uma teoria.

Todos esses elementos são virtualmente úteis, na medida em que instrumentalizam o conhecimento e a atuação sobre a realidade. A rigor, alavancam a própria construção da realidade, enquanto ordenação do caos e expressão existencial.

O quanto são, de fato, úteis, só a continuidade da experiência é que vai demonstrar. Nesse caso, o confronto de ideias a respeito pode ser estimulante, na medida em que enseja uma reflexão que permite revê-los, reavaliá-los, reformulá-los, aperfeiçoá-los, descartá-los, substitui-los. Em outras palavras, condiciona a progressão do conhecimento através do esforço coletivo.

Nesse debate, é fundamental separar o joio do trigo: os dogmas devem ser identificados e tratados de acordo com sua singular especificidade; os postulados, da mesma forma; ambos devem ser esclarecidos e questionados quanto às suas implicações nos resultados posteriores.

Com esse pano de fundo devidamente situado, aí sim, conceitos, sistemas conceituais, hipóteses e teorias podem ser submetidos a uma revisão crítica.

Tal revisão abrange dois aspectos: a consistência intrínseca e a extrínseca.

No primeiro caso, o que se avalia é o tratamento que se dá às formulações hipotéticas, nas suas várias modalidades: quão precisos são os conceitos e sua utilização, como se dá a correlação entre os vários conceitos dentro do mesmo sistema, se não se está confundindo conceito com hipótese, hipótese com teoria e todos os vice-versas cabíveis, o quanto não se estão erigindo em dogmas e postulados.

No segundo, discute-se o quanto elas estão de fato instrumentalizando a ampliação da experiência e do saber. 

A questão religiosa

É dentro desse contexto que se deve examinar a questão das relações entre a religião e o psicodrama.

Numa aula recente, na escola de psicodrama de Tietê, o tema era o substrato religioso do pensamento de Moreno, tendo-se tomado como texto básico, para discussão, o estudo em que Espina (4) demonstra a inspiração hassídica do criador do psicodrama. Um dos alunos, ao final da reflexão conjunta, expressa uma dúvida sincera e cruel: para ser psicodramatista seria, então, necessário, ser hassidista?

(4) ESPINA BARRIO, J.A.: Marco religioso del psicodrama. Leituras 15, Companhia do Teatro Espontâneo, S.Paulo, 1996 

Pouco tempo antes, no 12o. Congresso internacional de psicoterapia de grupo, em Buenos Aires, centenas de profissionais do mundo inteiro viveram o espanto diante do misticismo que marcou a programação de abertura e depois, mais especificamente, os “workshops” em que se fazia psicodrama associado a sessões espíritas.

Em Israel, por ocasião do 5o. Encontro internacional de psicodrama, ainda neste ano, um esforço ecumênico reunindo as três grandes vertentes religiosas do Ocidente e do Oriente Médio -muçulmanos, judeus e cristãos – redundou em enorme constrangimento, na medida em que o diretor de psicodrama utilizou elementos de sua própria religião como o elo que, supunha ele, ensejaria o congraçamento.

Poderíamos elencar uma série significativa de episódios e práticas semelhantes, que compõem, evidentemente, o cenário de Muyurina.

Mais uma vez, cumpre diferenciar situações.

Em primeiro lugar, há uma presença da religião em todos os aspectos da vida humana, dos quais não se exclui a atividade profissional, inclusive o psicodrama.

A religião é, antes de tudo, um fenômeno cultural que se faz sentir de forma mais ou menos explícita em todo o jogo de interrelações em que o homem esteja envolvido (não exclusivamente as inter-humanas).

Em seu aspecto histórico-coletivo, evidencia-se nos valores, na linguagem, nas decisões do cotidiano, nas metas, na convalidação racional dos processos psíquicos e relacionais. E de tal maneira se insere que mesmo aqueles que procuram afastar sua influência sobre seu pensamento e sua práxis, acabam sendo surpreendidos pelas armadilhas que eles próprios se preparam, utilizando insumos e procedimentos religiosos.

Nesse particular, enquadra-se a religião na mesma categoria que os demais conteúdos ideológicos que impregnam a vida coletiva: idéias que substituem a experiência e que podem sobreviver à revelia dela, porque entranhadas nas práticas sociais que, circularmente, as engendram e confirmam.

Nesse sentido, pode-se entender melhor as proposições de um determinado líder cultural, quando se procura identificar seus antecedentes religiosos. Pode ser que a presença da religião em sua história seja apenas discreta, resumindo-se ao que é o mais comum entre os membros de uma dada coletividade. Ou então, que a prática religiosa lhe seja tão relevante que não se possa descartá-la no processo de compreensão de seu pensamento.

Assim, o ingrediente religioso está muito mais presente na obra de Kierkegaard do que na de Moreno, e na deste mais do que na de Freud, que por sua vez o utiliza mais do que Skinner Rastrear esse tipo de influência costuma ser muito interessante e positivo.

Atentar para e, o quanto possível, expurgar os aspectos ideológicos da interferência religiosa no psicodrama é tão importante quanto o mesmo procedimento aplicado a ideologias de outra fonte ou natureza.

Esse tipo de retaguarda religiosa pode caracterizar até mesmo a atuação de pessoas que, embora tenham vivido ou estejam vivendo uma experiência religiosa altamente significativa para suas vidas, procuram entretanto dissociá-la de sua faceta profissional. É evidente que essa separação operacional tem seus limites, dado que a vida é una e que os esforços no sentido de segmentá-la e enquistar áreas específicas acabam tendo conseqüências por vezes muito mais severas do que a tentativa de gerenciar eventuais contradições, o que pressupõe explicitação e enfrentamento.

Há, por outro lado, aqueles que procuram trazer a religião para à linha de frente de sua prática. Identifico pelo menos três atitudes suficientemente distintas.

  1. Uma delas é a que procura estabelecer correlações entre o psicodrama e uma dada corrente religiosa, buscando que se fertilizem mutuamente. A presença de ambos, em sua prática, é visível, sem que entretanto haja predominância de um sobre o outro. É como se preservassem sua identidade mas se possibilitassem intercâmbios que, evidentemente, acabam imprimindo ao psicodrama um halo religioso e à religião um teor psicodramático. Nesse sentido, seu psicodrama diferencia-se dos demais por causa da coloração místico-religiosa, enquanto que sua prática religiosa também acaba por assumir feições próprias, em função de seu compromisso com ideias e práticas do psicodrama.
  2. Essa proposta se distingue de uma outra, que é a que pretende complementar o psicodrama com elementos extraídos da prática de uma dada religião e de tal forma o saturam que a face religiosa se torna predominante. Comparando com procedimentos agrícolas, o psicodrama é o cavalo e a religião é o enxerto: o produto é mais parecido com o enxerto do que com a planta que lhe deu suporte e enraizamento. É bem provável que este segundo caso seja um mero desdobramento do primeiro, em que a força do parceiro religião acabou por suplantar o parceiro psicodrama. Em todo caso, o resultado aparente guarda algumas diferenças.
  3. Já totalmente distinta é a prática religiosa que busca no psicodrama um aliado operacional. É importante ressaltar que, neste caso, o objetivo maior é de natureza religiosa: aprofundar a experiência, eliminar obstáculos a ela, ganhar adeptos. O psicodrama é apenas uma das táticas e estará sempre ao serviço da meta religiosa. Sua escolha se deve, provavelmente, ao fato de que seu substrato teórico é tido como mais frouxo, mais permeável, potencialmente menos conflitivo com os princípios religiosos.  

Iniciando um debate

Minha proposta ao leitor é que não nos limitemos a dizer que o debate é importante: não basta estarmos de acordo em que afirmar a existência de diferenças quanto ao marco teórico não encerra a questão, quando se confrontam diferentes formas de fazer psicodrama, como se estivéssemos jogando a brincadeira infantil da “vaca amarela”.

É preciso que esse debate seja iniciado. Nesse sentido, proponho-me a explicitar alguns pontos que considero fundamentais na caracterização da identidade do trabalho psicodramático. É uma provocação, um desafio, que espero seja correspondido. 

Psicodrama não é religião

Comecemos com a questão do dogma.

A “religião do encontro”, que encontramos nos primórdios da biografia de Moreno, foi uma fase superada que, se por um lado permite entrever a evolução de seu pensamento, por outro nos desencoraja a repetir esse pedaço da história.

O encontro é um fenômeno cuja identificação abre novas e amplas perspectivas de plenificação da vida, razão pela qual encontra um lugar de destaque no psicodrama, como uma experiência a ser buscada e favorecida.

Não constitui, entretanto, um álibi para fazer do psicodrama uma nova religião.

O entusiasmo de Moreno com suas descobertas têm muito mais o caráter de obstinação na busca de ampliá-las e de torná-las acessíveis – o que significa reconhecimento público de sua importância -do que propriamente de um fanatismo religioso, o que contrasta com o radicalismo de seus arroubos juvenis.

Para nós, que também descobrimos o psicodrama um dia, não faz muito sentido erigí-lo em dogma, em uma missão semelhante à que foi confiada aos primeiros apóstolos cristãos : “Ide por todo o mundo e pregai o evangelho a toda criatura”.

Essa descoberta deve ser valorizada como uma alternativa de trabalho que nos agradou, que adotamos e que, por isso mesmo, desejamos que seja aprofundada e aperfeiçoada, para que nossa atuação profissional se torne cada vez mais competente. Daí a busca de ampliação do círculo de praticantes e de interlocutores, pois só o esforço coletivo é que pode proporcionar uma massa significativa de experiências, capaz de alavancar o desenvolvimento desejado.

Não se trata de fazer proselitismo, nem de buscar converter os ímpios, fazendo com que encontrem o caminho do bem.

E como psicodrama não é religião, não pode fundamentar-se em dogmas. Seus pressupostos e seus procedimentos podem e devem ser constantemente questionados, inquiridos, criticados, virados ao avesso, sob pena de se transformarem nas conservas culturais cujo sentido escravizador faz delas o principal alvo dos esforços mudancistas do psicodrama.

Explicitando postulados 

Por outro lado, há alguns postulados que se fazem necessários para balizar nossa atuação.

Considero que o objeto de nosso trabalho está nos fenômenos situados na intersecção entre o individual e o coletivo. Não fazemos psicologia nem sociologia, nem tampouco psico-sociologia ou socio-psicologia. Trabalhamos as relações interpessoais não como fenômenos do psiquismo (como se fôssemos herdeiros de Sullivan) nem como fenômenos sociais isolados com a objetividade proposta pelos sociólogos.

Abordamos esses fenômenos enquanto posição existencial, em sua singularidade, considerando as pessoas concretas neles inseridas. Não para fechar conclusões, presumindo que comportem um único significado e uma única explicação se não correta pelo menos a mais correta. Nossa tarefa é p”roporcionar uma nova experiência capaz de levar ao ponto exatamente contrário: abrir a vida relacional para novos e múltiplos sentidos.

É por aí a nossa recusa dos modelos cartesianos, na medida em que estes nos colocam como observadores externos e neutros de uma realidade que existiria em si, independente de nós, cabendo-nos identificar as leis que regem o encadeamento dos fatos que estão sendo estudados e aplicá-las a sua compreensão.

Nessa nossa perspectiva, as relações todo-parte não são abordadas à semelhança de uma máquina, cujas peças têm uma existência em si, devendo, para compor o todo, estar devidamente articuladas e ájustadas. Se o todo não estiver funcionando a contento, nessa perspectiva dita mecanicista, haveria que buscar a parte avariada, corrigí-la e reinserí-la, com as indispensáveis regulagens.

Entendemos a vida humana como integrando uma totalidade que ao mesmo tempo a determina e é por ela determinada. Ou seja, se focalizamos uma área específica de um todo, não podemos esquecer que na penumbra continuam as áreas que ficaram fora do foco mas que continuam existindo da mesma maneira que a que momentaneamente privilegiamos; que fazemos parte dessa totalidade e que, enquanto terapeutas, lato senso, estamos dentro do campo focalizado e não fora dele. 

O objeto de nossa ciência, como o definimos acima, encarado a partir de uma perspectiva holístico-existencial, é um dos nossos postulados. 

Basquete sem bola

Não somos os únicos a adotar essa postura básica. 

É comum ouvirmos referências ao fato de que alguns profissionais se auto-designam psicodramatistas porque adotam, em seu fazer, uma “postura psicodramática”.

Que vem a ser essa postura?

Sua característica básica é o que se chama de sentido humano da relação, em que o terapeuta se coloca como pessoa, abrindo ao cliente até mesmo aspectos de sua vida pessoal, dentro dos limites da conveniência e do conforto.

Essa afirmação embute uma crítica ao que seria uma atitude fria adotada por profissionais de orientações teóricas diversas, como se ser caloroso fosse virtude e ser distante fosse inumano. O principal alvo dessa alfinetada é, sem dúvida, a psicanálise, cujo setting e cujas exigências assépticas a tornariam menos desejável (independente de considerar se isso é bom ou não, do ponto de vista metodológico).

Essa aparente indulgência, que do lado de lá costuma horrorizar os psicanalistas e a maioria dos terapeutas que se dizem “de orientação analítica”, não é patrimônio exclusivo do psicodrama: adotam-na os rogerianos, os gestaltistas, os reichianos, os corporais, os holísticos, os “místicos” em geral, enfim, todos aqueles que não precisam, metodologicamente, de um terapeuta “tela em branco”.

A dramatização ou mesmo as técnicas de ação não estão necessariamente incluídas nessa “postura”. Aliás, o termo “postura” parece ter sido criado exatamente para caracterizar como psicodramática uma terapia verbal. Perazzo refere-se, ironicamente, a esse tipo de terapia como basquetebol com bola quadrada. Talvez se pudesse mesmo falar de basquetebol sem bola, quando do jogo teriam restado todos os outros procedimentos, exceto o encestar, porque, sem bola, como fazê-lo?

Sobrariam, nesse caso, as “técnicas” psicodramáticas utilizadas, evidentemente, fora de seu contexto: o solilóquio, o espelho, a inversão de papéis. Entenda-se: por solilóquio, a investigação do que estaria por trás do que se explicita verbalmente: por espelho, o terapeuta dizer ao paciente algo que só ele está vendo e o paciente não, “mostrar” o que o cara está fazendo; por inversão de papéis, o incentivo a colocar-se no lugar do outro. Na dramatização essas técnicas visam à pesquisa do sub-texto, para que o texto possa ser enriquecido com os novos elementos conseguidos através desses procedimentos.

Que mais? Se nada mais, isso é muito pouco. Pobre. Precisamos ir mais além. 

Pensar cenicamente

O psicodrama nasceu do teatro espontâneo: a rigor, é o mesmo teatro espontâneo, onde o conflito psíquico ocupa quase todo, se não todo, o espectro temático (há quem defenda que, na verdade, todo conflito é necessariamente psíquico; mas essa leitura não é universal).

O teatro se faz de cenas. São estórias que se contam.

Para Perazzo, a bola do seu basquete psicodramático é a ação. É o teatro na sua forma final, a encenação.

O teatro do dramaturgo é o texto que ele escreve. Que não é só a récita dos atores quando encenam a peça que ele cria. O autor visualiza uma representação, antecipa em sua mente o palco acontecendo, descreve cenários, figurinos, coreografia, marcações, iluminação, sonoplastia, tudo… além das falas. A bola do basquete do dramaturgo não é a encenação concretizada mas a cena idealizada.

Esse deslocamento pode ser a chave para um psicodrama sem ação, por mais absurda que possa parecer tal proposta.

Não há como negar que todo o edifício psicodramático foi planejado e construído para o trabalho com grupos. E nessa área, pode ser considerado imbatível.

Quando se trata, porém, de utilizá-lo no atendimento de um único paciente, reduzindo-se a unidade funcional a uma só pessoa, sem dúvida que alguma adaptação tem que ser feita.

O uso de almofadas como símbolos de elementos cênicos e de personagens, conquanto largamente disseminado e sem dúvida de grande utilidade, tem limites ínuito sérios que vão muito além daqueles denunciados pela recusa de certos pacientes em “falar com almofadas”.

Dentre essas limitações podemos destacar o fato de que é muito difícil criar determinados climas emocionais que seriam indispensáveis; que as estórias acabam direcionando-se para uma estrutura literária reducionista, o foco em apenas dois personagens; que é muito difícil o aquecimento dos papéis de ator e autor quando não há platéia nem atores disponíveis para a contra-cena, suscitando no paciente a sensação pertinente de ridículo; a extrema complexidade do desempenho simultâneo pelo terapeuta dos papéis de diretor, ego-auxiliar e platéia; e assim por diante.

Nesse caso, pode ser estimulante a idéia de que o foco poderia voltar-se para a produção dramatúrgica, que consistiria em levar o paciente a buscar cenas em sua experiência e criar estórias a partir delas. 

Um exemplo desse procedimento é o que Fonseca chamou de psicodrama interno, uma feliz adaptação de uma estratégia tradicional em outras abordagens, o sonho dirigido.

Essa mudança de foco cobriria duas funções básicas do teatro espontâneo, indispensáveis para a terapia que pretendemos: o contar histórias e a criação.

Com isso, amplas avenidas para aperfeiçoamentos técnicos e teóricos se abrem, tornando prescindíveis os atalhos e trilhas improvisadas que costumam ser utilizados como “complementação”, dada a precariedade tanto da chamada “postura” psicodramática como de um psicodrama desteatralizado (ou basquete sem bola).

Seriam descartadas as “interpretações”, as “mostrações”, as “devoluções”, as “pontuações”, os “apontamentos”, os exorcismos destinados a fazer aparecer emoções ou a purgar o psiquismo de sentimentos considerados indesejáveis, e assim por diante, dentro do universo poluído por resíduos degradados de outras abordagens que se incorporam à prática psicodramática.

Por extensão – e tomando mais especificamente um tipo de complementação que vem sendo ultimamente muito questionado – dispensam-se também os aportes religiosos.

Isso porque o pensar cênico-dramatúrgico é de uma riqueza quase inesgotável. O quase, aqui, é cautelar, porque na verdade, como toda arte, não há limites para a criação, para o novo, para a expressão da sensibilidade, para o saber ensejado pela intuição.

No caso do psicodrama, em que se pretende o desenvolvimento da espontaneidade, a experiência de criar é fundamental. 

O referencial sociométrico

Quando se fala em sociometria, mesmo entre os psicodramatistas que possuem cartucho com sinete, a primeira associação que se faz é com o teste sociométrico. Infelizmente, porque essa redução significa viver pobre por não saber a riqueza que possui. 

Por sociometria entendemos a compreensão da interação dos personagens que integram uma dada cena existencial.

Trocando em miúdos: minha vida de relações, como eu- a vejo e como eu a represento no contexto dramático, mesmo através de caracteres ditos fictícios, inclui um sem número de personagens, que participam da trama com os mais diferentes papéis.

Se eu quiser compreender o que acontece, a primeira coisa que eu faço – ainda que não sistematica e deliberadamente – é mapear essas relações, ou seja, definir quem são os personagens, de que tipo são seus vínculos, como interagem, quais são os seus papéis e como esses papéis estão integrados entre si e com o todo do enredo.

A proposta moreniana consubstanciada no teste sociométrico é verificar como se organizam as forças de atração e repulsão, em função de um critério (que é o projeto dramático, ou seja, o para que do estarem juntas essas figuras). Operacionalmente, se faz uma delimitação, uma focalização, porque a quantidade de personagens dessa trama é enorme e seria difícil mapeá-las todas de uma só vez: essa delimitação é o átomo social. Para ampliar a compreensão, entretanto, é necessário ir além dele, para a rede da qual ele faz parte, uma extensão que praticamente não tem limites.

A atuação desses personagens não se dá caoticamente: tendo como referência o projeto dramático, cada um tem o seu próprio papel, que não pode jamais ser compreendido isoladamente, sem referência ao interjogo com os demais papéis e ao todo da trama. Uma observação: esse é um risco que nos ronda permanentemente, ou seja, tomar os papéis no sentido sociológico – como Rocheblave-Spenlé – ou psicológico – como se fora uma característica da personalidade.

Tomado entretanto no seu enfoque existencial, o conceito de papel nos permite ir além da carta de quem é quem, compreendendo a multiplicidade de projetos dramáticos que se entrecruzam em estórias aparentemente simples, conquanto dotadas de profunda dramaticidade. 

É nesse momento que o entrosamento criativo (tele) se transforma numa busca permanente, num esforço para transcender o pressuposto do sentido único que pretendemos conferir aos fatos e que funciona como camisa-de-força que contém o “enlouquecimento” que a abertura para o outro e para o todo poderia significar.

Essa perspectiva teórica não tem sido profundamente explorada, talvez porque nem sempre acreditemos em sua fertilidade – daí que não a tomemos como postulado de nossa prática, senão nominalmente.

Se se trata de caracterizar a identidade psicodramática, entretanto, entendo que esse seria um dos pilares, ou seja, sem sociometria não há psicodrama. Se a dramaturgia poderia ser considerada a bola, a sociometria seria a cesta: em torno de ambos se desenrolaria o jogo. 

E onde fica a ação?

Tenho insistido que no teatro espontâneo, como no psicodrama, a ação que se exige é teatral, cênica. Jogos, jogos dramáticos e o que Williams bem caracteriza como técnicas de ação constituem atividades paralelas, preliminares, complementares, que apesar do parentesco não chegam a caracterizar o psicodrama ou o teatro espontâneo. Num primeiro momento, podem até parecer sózias, mas um pouco mais de atenção vai levar à constatação de que nem isso. 

Os grupos constituem, sem dúvida, a condição ideal para desenvolver a criação teatral coletiva, tanto dramatúrgica quanto representativa. Afinal de contás, o teatro espontâneo foi concebido exatamente para atividades grupais e é inconcebível que desperdicemos a oportunidade de utilizá-lo integralmente.

Já o enorme desafio que temos que enfrentar é a tradução dessa metodologia para o trabalho com indivíduos, separadamente. Parece que a falta de parâmetros mais claros ou a utilização de parâmetros equivocados têm sido as principais responsáveis por uma espécie de “culpa por não dramatizar”, que assola muitos de nossos colegas, sem contar o definhamento técnico-teórico.

O mais intrigante, na nossa história recente é, entretanto, o caminho inverso: na medida em que empobrece a prática bipessoal, seus reflexos acabam atingindo o próprio trabalho com grupos, que se reduz a exercícios de relaxamento e de integração grupai, “imagens”, “entrevistas com o personagem”, “pesquisa de sentimentos e fantasias” e pouco mais que isso.

É a hora em que o psicodrama só não basta. 

E Muyurina como fica?

O psicodrama não é apenas uma técnica psicoterápica. A palavra-de-ordem que prega que ele deve transpor as paredesdos consultórios tem sido cada vez mais não apenas o slogan de radicais: mais e mais se encontra o psicodrama em lugares onde existem grupos para serem trabalhados. A redescoberta da vertente do teatro espontâneo tem sido uma facilitadora desse processo, uma vez que ajuda a purgar o trabalho do ranço psicoterápico que em passado recente afastava a clientela que se pretendia alcançar.

Daí que não há como pensar que ele não possa ser utilizado como ferramenta de trabalho para comunidades religiosas: para resolver seus próprios conflitos, para trabalhar problemas espirituais e até mesmo para divulgar suas mensagens, como o fazem aqueles que utilizam o teatro espontâneo para fins políticos, sociais, para conscientizar a respeito de saúde pública etc..

A questão não é de ordem técnico-teórica, porém ética. Ou seja, quando o psicodrama for utilizado para fins religiosos, esse objetivo tem que ser explicitado previamente, dando ao participante o direito de aceitar ou não o convite. Atenção: é convite, mesmo. Qualquer coisa que não respeite esse pressuposto pode, com justiça, ser considerada manipulação.

Só que isso vale não apenas para eventos de propaganda religiosa, mas para qualquer outro tipo de realização, cujas finalidades devem ser sempre previa e abertamente definidas.

Pelas provocações teóricas deste artigo, fica claro que entendo que a associação entre psicodrama e religião é não só dispensável como indesejável, se se pretende com a religião complementar o que seria uma deficiência do psicodrama. E aí nem importa muito se o que prevalece é o psicodrama ou a religião, no equilibro de forças entre os dois parceiros. Entretanto, nos casos em que se pretende instrumentar com o psicodrama uma prática religiosa, vale a consideração ética acima.

Por outro lado, se o cotejo entre conceitos psicodramáticos e conceitos religiosos tiver como finalidade o esclarecimento e a ampliação da compreensão tanto de uns quanto de outros, é claro que isso pode ser um exercício saudável. Desde que, evidentemente, se tenha presente o risco de resvalar para o sincretismo ou para um ecletismo complacente porém inconseqüente.

E para concluir, retomo minhas reflexões sobre a permanente ameaça da ideologia e da ideologização, que se consubstancia não apenas nos conteúdos religiosos que se infiltram no pensamento psicodramático, mas em todos as idéias que sejam tomadas como definitivas e não sujeitas à verificação empírica.

Inclusive estas minhas proposições.