Leituras 2: Asas e raízes – Locus, Matriz, Status Nascendi e o conceito de Clusters
Dalmiro M. Bustos
“Em uma filosofia do momento, ha três fatores a serem enfatizados: o locus, o status nascendi e a matriz… Estes representam três aspectos do mesmo processo. Não existe “coisa” sem seu locus, não há locus sem seu status nascendi, não há status nascendi sem sua matriz. 0 locus de uma for, por exemplo, está no canteiro onde cresce. Seu status nascendi é o de uma coisa em desenvolvimento, tal como brota da semente. A sua matriz é a propria semente fértil. Todo ato ou desempenho humano tern urn padrão primário de ação, urn status nascendi.” (Moreno, J.L. e Moreno, Z.T. 1977)
Aqui Moreno oferece alguns aspectos para uma abordagem racional de uma ampla perspectiva da realidade. Se estes são validos para todos os atos ou desempenhos humanos, será que podemos utilizá-los para compreender o método psicodramático? Ele segue dizendo:
“Esse princípio pode ser aplicado às origens do organismo humano: o locus é a placenta no útero materno, o status nascendi é o momento da concepção. A matriz é o ovo fertilizado, do qual desenvolve-se o embrião”. (Moreno, J.L. Moreno, Z. T.1977).
Eu comecei minha carreira como psiquiatra clínico trabalhando por cinco anos, de 1957 a 1962, como residente em hospitais psiquiátricos nos Estados Unidos. Após essas experiências importantes, eu estudei e cliniquei em psicanálise, tanto individual quanto em grupos. Meus guias foram Freud, Klein e Bion. Em 1964 encontrei J.L.Moreno durante urn congresso de psicodrama em Paris. Eu havia assistido ao VI Conwesso de psicoterapia em Londres, onde uma Anna Freud reservada fora a estrela luminosa. Misteriosa e distante, ela era o símbolo do reino inconsciente. Eu havia sido convidado por urn amigo para assistir o congresso de psicodrama, onde Moreno estava no esplendor de sua plenitude e eu o vi dirigindo uma sessao com Zerka Moreno e Anne Ancelin Schutzenberger como egos auxiliares. Imaginem meu choque ao descobrir que Moreno não era, em absoluto, distante, mas ficava em pé corn seus braços abertos para uma emocao transbordante. Eu me voltei a meu amigo e sussurrei: “Eu não gostaria de ser tratado por esse palhaço.
Imaginar uma aliança teria sido profético, pois não muito tempo depois daquele encontro iniciei meu treinamento no Instituto Moreno em Nova Iorque. Ali eu gradualmente comecei a incorporar uma nova maneira de observar a realidade. Isso foi fundamental para mim e mudou radicalmente minha orientação. Zerka e J.L. Moreno deram-me permissão para ser espontâneo. Aprendi a tratar meus pacientes a partir de uma posição existencial do encontro, não porque seja menos responsavel ou sério, mas pelo contrario, porque desta posição eu havia visto muito mais e havia aumentado meu contato corn a vida. E claro que tambem houve momentos de ansiedade. Parece que ansiedade e espontaneidade são duas fases do mesmo processo.
Assumir essa posição de viver em continua recriacao de meu universo, sem totens, é como pular do trapézio sem uma rede de segurança: deve-se testar preparado para qualquer coisa. Algumas vezes eu observo com inveja aquelas pessoas que podem viver com dogmas fechados, mas a inveja logo desaparece (apesar de que algumas vezes não suficientemente rápido) e eu sinto o alívio da instabilidade. Tendo tomado a posicão de viver e pensar em sincera união comigo mesmo, continuo redescobrindo Moreno. Suas técnicas e formulações são minhas raizes, que são nutridas no solo fértil do psicodrama moreniano. Mas, ser fiel a meus professores tambem implica em ter minhas próprias asas sem trair minhas raizes. Eu sei que Moreno desejou que eu usasse minhas asas. Uma vez, ao desempenhar seu papel num psicodrama, eu o indaguei sobre isso. Ele respondeu: “Se voce tomar meus delineamentos de uma forma dogmática, estará traindo-me. Eu lhe disse para “ser voce mesmo” e não para “tentar ser eu”.
A teoria de Moreno
Levei muito tempo para incorporar técnicas psicodramáticas em meu trabalho. Pouco depois de começar meu treinamento, estava pronto para dramatizar pequenas cenas e praticar inversões de papéis. Eu me aproximei de meus pacientes mostrando meus sentimentos e partilhando-os com eles. Mas era difícil para mim compreender a teoria. Acostumado à sistematização clara da psicanálise, era-me difícil entrar dentro do caos com que Moreno apresentou seus pensamentos. Ele se contradisse milhares de vezes e deixou as pessoas livres para organizarem sua espontaneidade. Ele não nos deu uma doutrina acabada.
Marineau (1989) diz que Moreno gastou, em viagens e ensinando, o tempo que poderia ter empregado para sistematizar suas teorias. De algum modo acho que isso seja verdade, mas tambem sinto que o processo de sistematização era oposto a seu pensamento, que nao era metodológico ou estruturado. Ele somente alcancou uma teoria metodológica e estruturada em “Who shall survive”, corn relação à sociometria. A verdade é que é nossa vez, como seus discipulos, de reorganizar seu trabalho criativamente sem trair suas raizes.
Ao longo dos anos praticando e ensinando psicodrama, encontrei dificuldade para comunicar o método em outras formas que não a experimental. A melhor forma de aprender psicodrama é praticando-o, nos papéis de protagonista, diretor, ego auxiliar e membro de grupo. 0 fator emocional e a estrela guia. Contráriamente à psicanalise que exalta o racional, a emoção toma um lugar central para os psicodramatistas. Quando imersos no escuro, psicodramatistas “sentem” seu caminho, enquanto psicanalistas “pensam” seu caminho.
Confundir pensamento corn racionalizacao é erroneo, assim como o é confundir emotividade corn instabilidade emocional. Eu tentei, portanto, em minha busca atraves de minhas raízes morenianas, encontrar algo que me permitisse ordenar de uma maneira racional a teoria do método psicodramático.
Primeiramente, está claro que Moreno não desenvolveu isto ele próprio. 0 psicodrama foi planejado para funcionar como um ato terapêutico: isto é, era terapia reduzida à somente uma sessão ou de qualquer forma, uma seqüência de sómente duas ou três sessões. Moreno nunca pensou nele como método a ser aplicado em um processo psicoterápico longo. Foi a primeira vez que uma abordagem terapêutica permitia urn comeco, meio e fim num tempo reduzido.
A psicanálise propunha sessões diárias, até que as pressões da vida real tornaram isso impraticável. É impossível demonstrar uma sessão psicanalítica em publico, porque ela não foi planejada para se encaixar num formato como esse. É possivel falar, escrever e pensar sobre psicanálise, mas ela não pode ser mostrada. Muitas vezes durante uma sessao psicanalítica nada aparentemente significativo acontece: deve-se compreendê-la a partir do processo.
0 psicodrama permite compreensão independentemente do processo. Ele pode ser descrito ou não, mas quando aplicamos psicodrama como um método dentro do tratamento individual (psicodrama à deux) ou de grupo, necessitamos de urn enquadramento metodológico diferente. Muitas pessoas se voltam à psicanalise quando confrontadas corn o problema de aparente falta de uma base teórica.
Antes de continuar, nós devemos enfatizar o uso específico da palavra matriz. Ela vem do latim mater, significando mae, o maior nutriente, ama-seca, a terra. 0 útero tambern é chamado de matriz. Mas Moreno usa as palavras de uma forma criativa (algumas vezes de uma forma caprichosa). 0 que ele estritamente define como locus (o canteiro onde a flor cresce ou a placenta no útero materno ) seria, falando de forma geral, matriz. Isso é confuso. Respeitando a linha mestra de Moreno, podemos ver que locus determina o lugar onde algo nasceu. Status nascendi é, então, a dimensao temporal, o momento em que o fato ocorre. Assim, matriz designa aquele algo no maximo de sua especificidade.
Ainda nessa linha, se tomarmos o conceito de matriz como o ovo fertilizado ou a semente germinativa, veremos que eles contêm os elementos de informação genética que vão determinar se no futuro nascerá uma planta ou um bebê. É algo especifico e não reproduzível. É a esse aspecto do algo que Moreno está se referindo. Locus é um fator condicionante, mas não o fator determinante per se. Nao é específico, mas tem grande influência no caráter final daquele algo. 0 solo em que uma semente é plantada pode ser mais ou menos fértil, mas a placenta pode ter uma nutrição melhor ou pior. Essas condições podem determinar se uma rosa é mais bonita e cheia de cor, com pétalas fortes ou fracas, mas não podem transformar uma rosa em uma violeta ou uma margarida. Assim como urn bebê do sexo masculino não pode se transformar em feminino ou vice-versa. O momento do status nascendi é uma dimensao temporal sem uma forma, exceto pelo espaço em que ocorre. Também tem urn papel condicionante: uma planta que germina no momento correto, quando o solo oferece fertilidade maxima é diferente da planta que germina no momento errado quando os fatores ambientais não são favoraveis.
Locus, status nascendi e matriz do psicodrama
Vamos agora olhar para o método psicodramático. Urn paciente vem se consultar corn uma queixa específica. Isso é equivalente aquele algo: uma flor ou um bebê. É este “o que”, que devemos investigar agora. Agora consideremos o seguinte:
- Uma determinação específica, clara, sobre o que está errado e deve ser corrigido.
- Uma investigação do locus ou grupo de fatores condicionantes onde esse “algo” foi criado.
- Uma investigação da resposta específica pela qual a pessoa optou frente aos estímulos que estavam presentes, isto é, a matriz.
- Uma investigação do momento específico quando essa resposta emergiu, isto é, status nascendi.
A Sessão
Vamos considerar uma sessão de psicodrama em específico. Temos uma protagonista corn uma certa queixa, a qual chamaremos de Betty. Ela se queixou de ser incapaz de se relacionar com homens. Quando estava com urn amante se sentia completamente fraca e aceitava qualquer coisa que ele dissesse ou fizesse. Sua queixa é dramatizada no palco, com egos auxiliares, durante uma sessão de grupo. Ela mostra uma cena na qual acaba desistindo de tudo que tem para seguir um homem que a maltrata. Nós agora temos a tarefa para a primeira parte do psicodrama, investigar em açao “o que” vai ser o foco da sessão. Através da tecnica de concretização, ela escolhe um ego auxiliar que vai representar esse comportamento em específico. Nós devemos manter esse ego auxiliar no palco o tempo todo. Betty diz que esse comportamento é um padrão constante, independentemente das caracteristicas de cada amante. Ela chama a esse comportamento de “mártir agradável”. Na inversao de papeis com a mártir agradavel, ela nos informa que nasceu para agradar pessoas. Neste ponto ela é interrogada sobre como foi criada e pra que. Ela relembra uma cena de sua infância remota. Tinha 4 anos, era 1945, e ela estava corn suas duas irmãs mais velhas e seu pais, que estavam emigrando para a Argentina.
Ninguém lhe explicou porque haviam se mudado da Alemanha. Ela não entendia espanhol. Quando indagada sobre o que estava sentindo respondeu “medo” e se curvou para a frente. Ela disse que nós deveriamos falar em voz baixa. Eu lhe perguntei quem “nós” somos. Ela respondeu: “Todos nós, incluindo você”. A falta de discriminacao entre a realidade e o psicodrama mostra o grau de envolvimento. Nos estávamos todos lá.
Ela disse: “Não deixe meu pai nos ouvir. Se isso acontecer ele vai matá-la”. Muito cuidadosamente ela escolheu o ego auxiliar para fazer o papel de seu pai. Quando ele subiu ao palco lhe pedi que invertesse papas corn ele. Senti que ela talvez não fosse capaz de fazer essa inversão, devido ao grande medo. Mas ela o fez e rapidamente mudou sua expressao e postura corporal. Como pai, ela diz que havia sido sargento no exerdto nazista. Decidiu abandonar a Alemanha apos ser ferido. Conseguiu fugir do hospital mas sente-se um covarde. Ele diz: “Homens nascem para defenderem seus ideais e estarem prontos para matar ou morrer”. Eu the pergunto: “E as mulheres?” Ele responde: “Elas sao frágeis e necessitam de proteção. Elas nao podem pensar por si mesmas”. A cena continuou entre pai, mãe e as três irmãs.
Em urn determinado ponto, a irmã mais velha, representada por Betty na inversão de papéis, comegou a chorar e gritar acusando seu pai de estar torturando a familia toda. No próximo momento, no papel de pai, ela se volta para a mãe e bate nela. Eu fiquei surpreso. A irmã de Betty gritou e sua mãe foi punida? Betty no papel de seu pai falou: “Eu tenho que mantê-las todas sob controle, este país ester cheio de judeus. Se minha família começa a falar coisas que não deve, nos todos estaremos em sério perigo. Vou punir sua mãe por qualquer coisa que elas façam. Culpa é a melhor maneira de controlar uma pessoa, como urn controle remoto”.
Até esse ponto investigamos o locus, a combinação de condições sociais e familiares que cercam a protagonista. A questão principal agora é como ela vai reagir à situação, que tipo de resposta vai dar, que sera especifica e, até certo grau, escolhida por ela. Essa resposta constitui a matrix. Frequentemente as terapias perdem tempo demais trabalhando na série de drcunstâncias, muitas vezes trágicas, que condicionam o processo de amadurecimento do paciente, ao inves de ir direto a instância em que a resposta foi acionada. Uma vez que a resposta é dela, ela pode mudá-la. Betty poderia ter negado a situação toda, ou ter aprendido a fugir ou talvez ter se tornado uma nazista ela própria. A resposta particular que damos a estimulos é nossa e depende de vários fatores. Conforme Moreno ressaltou:
“A área que se estende entre influências hereditarias e ações télicas é dominada pelo fator E. O fator E é assim o solo a partir do qual, mais tarde, a matriz da personalidade espontânea, criativa se desenvolve. Essa personalidade pode ser descrita como uma função de G(genes) , E(espontaneidade), T(tele) e M(meio)”. (Moreno, J.L. & Moreno, Z.T., 1977)
Betty defronta-se no psicodrama corn sua resposta à situagao e confronta o ego auxiliar que está no papel do “martir agradável”:
“Se eu não tivesse te usado, a situagao teria sido pior, muito pior”.
Eu the pedi que mostrasse como esse pequeno “mártir agradável” resolveu a situacio.
O martir agradável respondeu:
“Eu sorrio com a dor, eu aceito a punição que ele dá à minha mãe como se isso fosse a coisa mais natural a se fazer, e entao ele para”.
No papel de pai isso foi aceito e ele falou:
“Ela é a única que me faz sentir culpado e uma vez que eu nao suporto o sentimento, ela me controla”.
Assim, em sendo a perdedora ela ganha. Ela respondeu entao:
“Se eu não fizesse isso eu sentiria tanta raiva que o mataria”.
Eu the disse que ela poderia fazê-lo agora e lhe dei espago para experimentar novas maneiras de lidar com a agressao. Ela teve uma forte catarse agressiva, mas depois disse:
“Eu nao quero matá-lo, eu preciso de voce”.
Ela então abracou o pai temamente. Eu lhe perguntei: o que iria fazer corn o “mártir agradável” agora?
Esse é o momento para re-matrização: ela criou esse padrão de comportamento e portanto ela pode mudá-lo, uma vez que compreende porque se comporta dessa forma. Ela pode recriar sua vida e assim nascer novamente. Ela ajudou o ego auxiliar que estava no papel do “mártir agradavel” a se levantar e falou:
“Agora voce está livre. A questão nao é ser o martir a fim de controlá-los porque senão você os mataria. Voce não está feliz fazendo aquilo, entao levante-se e comece a se mexer lentamente”.
A catarse foi necessária antes da re-matrização, de outra forma a quantidade de tensão teria interferido corn o restabelecimento da espontaneidade. Ela havia desenvolvido um padrao fixo de comportamento defensivamente, que era, portanto, conectado corn ansiedade ao inves de espontaneidade.
Ao colocar o foco em sua resposta, ela assume uma responsabilidade adulta e afirmativa pelo seu comportamento, como um primeiro passo para uma mudança positiva.
O conceito de clusters
Até agora, eu descreví a teoria do método do psicodrama, corn a esperança de que isso ajude psicodramatistas a conduzir uma sessão. Mas outra de minhas preocupações ao praticar e ensinar psicodrama é: podemos compreender o sofrimento humano de uma forma sistemática, sem ter que recorrer a formulações classicas sobre psicopatologia?
Esses conceitos são amplamente aceitos em nossa cultura. Termos como neurose, psicose, histeria, etc, fazem parte da nossa linguagem do dia a dia, assim como representam categorias diagnósticas e classificações psiquiátricas e psicológicas. Moreno sempre teve urn forte sentimento contra o uso da ideologia subjacente às formulações psiquiátricas e ao invés disso ofereceu uma nova forma de olhar o sofrimento humano, que era mais compassiva e baseada preferívelmente na saúlde ao inves da patologia. Dentro desses formulações teóricas nós podemos encontrar alguns conceitos, os quais, se adequadamente desenvolvidos, podem nos ajudar a completar seu trabalho teórico sem trair sua essencia.
O conceito de clusters é uma das formulações de Moreno que considerei poder nos conduzir neste caminho. Ele diz:
“Os papeis não são isolados, eles tendem a configurar-se em clusters. Existe uma transferência de E de papéis não desempenhados para aqueles presentemente assumidos. Essa influência é chamada de efeito cluster”. (Moreno, J.L. & Moreno, Z.T. 1977)
Novamente, em seu livro Who shall survive, ele fala, quando se refere ao seu diagrama de papeis:
“Ele retrata os clusters de papéis de individuos e a internao entre esses papéis”. (Moreno , J.L. 1934). Isso significa que papéis se intercomunicam: eles têm a capacidade de intercâmbio de experiencias. Um padrão de comportamento adquirido no papel do pai pode ser aplicado a outros com uma dinâmica semelhante, na qual o exercício da autoridade domina, por exemplo, o papel de patrão ou o papel de professor”.
Quais são as dinâmicas essenciais de um ser humano? Para responder a essa questão nós devemos observar as primeiras experiencias evolutivas. Em sua matriz de identidade, que é totalmente indiferenciada, o bebê se vê completamente indefeso. Sua sobrevivência depende totalmente de sua mãe ou do adulto responsável, que cuida dele e o alimenta. Essa dependência é total e as ações do bebê sao relacionadas à ingestao de comida. A defecação é involuntária, uma vez que o bebê não tem nenhum controle ativo sobre ela até mais tarde. Esses são os papéis que Moreno chamou de psicossomáticos. Prefiro pensar que podem ser chamados de funções do papel de bebê, porque não se enquadram completamente no conceito de papel, que é uma unidade psicossocial de
comportamento e pressupõe urn processo de duas vias determinando sua ação. Portanto, em meu ponto de vista, os papeis psicossomáticos devem ser vistos como protopapéis de funções inerentes ao papel de filho/a e não como papéis estritamente ditos.
Os três clusters principais
Cluster 1 | Incorporar passivamente e depender. |
Cluster 2 | Procurar por aquilo que queremos, conquistar autonomia. |
Cluster 3 | Repartir, competir e rivalizar. |
Cluster um
Reportemo-nos ao papel da crianca em seus estágios iniciais dependente, passiva, incorporativa. Se essas experiências ocorrem corn mais espontaneidade que ansiedade, então sua capacidade para uma aceitação adulta da dependência será positiva. Culturalmente, a palavra dependência está de alguma forma denegrida: existe muita pressão cultural para que se seja autônomo, auto-suficiente e para que não se precise de ninguém. Nossa cultura exalta uma figura autônoma que é muito próxima da solidão. Mas nós sabemos que para ser capaz de amar como adulto, temos que aprender a depender espontâneamente e amadurecidamente da pessoa amada. Não sómente nestas circunstâncias é necessario assumir dependência. A vida, mais cedo ou mais tarde, nos confronta com perdas e frustrações. Ninguérn vive em estado de constante sucesso e triunfo. Perder é doloroso. É nessa situação, quando é necessario ser passivo e dependente, que nós podemos nos permitir ser cuidados e contidos até que a dor passe.
A antecipação espontânea dessa continência torna possivel correr o risco de amar e nós então nos sentimos mais fortes. Se essas primeiras experiências, ao invés disso, geram ansiedade, a qual está associada com abandono e solidão, entao essas se somam a dor natural que está presente em qualquer mudanca, frustração ou perda. A negação da ansiedade faz com que o indivíduo evite procurar consolo e apoio. Eu chamo essa experiencia de cluster urn , que unifica funcionalmente os papéis onde a dinâmica é passiva-dependente-incorporativa. Isso incluiria os papéis de filho, filha, aluno, paciente, etc. Nesses papéis existe um espectro de dependência inerente e necessária.
Vínculos simétricos e assimétricos dentro dos clusters
A esta altura é importante mencionar que os vínculos possiveis entre papéis podem ser simétricos ou assimétricos. Papeis simétricos são aqueles onde os papéis complementares tem a mesma hierarquia e responsabilidade equivalentes. São reconhecidos porque existe urn nome próprio para designar o vínculo, por exemplo, irmãos, amantes, companheiros, amigos. Eles são essencialmente simétricos, na medida em que as mesmas regras são aplicadas para ambos os papéis em interação. Papeis assimétricos não tern um nome próprio para designá-los e tem que ser nominados pelos dois papéis em interação, por exemplo, pai-filho, professor-aluno, terapeuta-paciente, patrão-empregado. Responsabilidades e hierarquias diferentes marcam esses papéis. São relacionamentos em que o poder é claramente controlado por urn dos dois vínculos.
Foi importante expor isso agora, de forma que o vínculo de dependência pudesse ser compreendido. No relacionamento dependente há duas partes: uma que alimenta, cuida e tem a responsabilidade e o poder; outra que é alimentada, cuidada, é passiva e dependente. Além de papéis assim específicos, a capacidade para dependência é uma função necessária em outros papéis, por exemplo, marido-esposa, onde um periódicamente assume a função de continência, conforme as circunstâncias. Se isso não ocorre, entao a dinâmica interacional falha.
Cluster dois
Se avançarmos no processo de desenvolvimento, sabemos que a criança passa da dependência total para uma consciencia mais autônoma. Ela ingere comida através de sua boca, aprende a controlar seus esfíncteres, ela anda e atinge seus próprios objetivos. A figura dominante durante esse estágio do crescimento é algumas vezes o pai, que pode ser associado à atividade e ao mundo externo. Apesar de que isso é determinado culturalmente e não naturalmente, é usual que a criança experiencie a mãe como a primeira figura de proteção. É sua face que a crianca primeiro aprende a discriminar e que é associada ao primeiro estagio. Mais tarde aparece a outra figura, pai, que coincide corn a aquisicao de uma posicao ativa, autônoma. Essa dinamica define o cluster e condiciona o desempenho de papeis ativos que envolvem trabalho, auto-confianca, a capacidade de conquista, o exercido do poder.
Cluster três
Os clusters urn e dois, na vida adulta, permanecem como circunstâncias alternativas e existem como potenciais. A potência dessas alternativas pode ser marcada porque os papéis mais exercidos sao os simétricos, correspondendo ao cluster três. O protótipo desses papéis é o relacionamento fraternal. Um irmão, irmã, amigo, companheiro ou colega age como modêlo para esses vinculos simétricos. Nenhum dos dois toma conta do outro ou é oficialmente responsavel. Deve-se aprender a competir, rivalizar, partilhar. Mas o papel de cluster três sabe tanto quanto ou tão pouco quanto nós próprios sabemos. Eles colocam limites, cuidam das posses, atacam ou se defendem de agressores. Dentro deste campo nós aprendemos a tomar conta de nós mesmos mais cuidadosamente. Portanto, essas são as três dinâmicas essenciais.
Ter acesso a cada urn poderia ser a resposta para aquele equilíbrio instável chamado maturidade. Mas a vida sempre deixa cicatrizes conforme ela passa. ~E aqui, então, que podemos nos beneficiar desses conceitos como ajuda para entender a dinâmica dos pacientes. Nós devemos procurar pelas feridas nos diferentes clusters. Quais são os papéis preservados? Quais são os papéis mais afetados? Quais são as funções que necessitam re-treinamento e reparação?
Clusters na sessão de Betty
Voltemos ao caso de Betty. Sua queixa era de que ela não conseguia amar ou se devotar a ninguém. Sentia-se humilhada perante os homens e retomava o poder através da culpa. Autonomia era impossível dentro do vínculo amoroso, ao qual ela se submetia. Seu pai, um fator no locus, nunca permitiu que uma pessoa independente e forte se aproximasse dele e sua capacidade de se modelar em papeis ativos e autônomos era muito pequena. O cluster dois foi o primeiro a ser reparado. Lentamente, Betty começou a dar respostas assertivas. O mito que a “agressão destroi”, que a levava ao papel de mártir, deu vez a uma manifestação mais aberta de assertividade. A catárse agressiva necessária para que isto acontecesse levou vários meses de terapia. Ela se tornou capaz de começar a colocar limites para agressores em sua vida diária.
A matriz que gerou o mártir como resposta adaptativa estava aberta para ser re-aprendida. Meu papel como terapeuta estava claramente no cluster dois. Eu era o pai que lhe permitia rebelar sem se submeter a exigências. Ela podia ser agressiva, aprender a medir sua agressividade, manuseá-la e usá-la mais apropriadamente. Isso lhe permitiu aceitar papéis de comando em sua profissão. Mas seu relacionamento como parte de um casal não melhorou. Durante uma sessão, urn ponto importante emergiu pela primeira vez. Betty declarou que quando ficava sozinha sentia-se ansiosa. Ao invés de se perguntar o que deveria fazer, entra em contato corn o que fazer e a ansiedade aumenta.
Betty em sessões individuais
Essa sessão foi individual, sem egos auxiliares. Eu lhe pedi para fechar os olhos e ser aquela ansiedade. Quando perguntou: “O que eu quero?”, ela novamente se curvou, mas desta vez cobriu a cabeca. Ela disse que sentia “um vazio amargo”, como aquele de um bebê que nao é alimentado. Ela sentia fome, frio, falta de proteção; não havia sentimentos quentes. Havia se tornado urn bebê de três ou quatro meses e o ano era de 1941. Sua cena foi montada sem memórias reais; ela tinha sòmente as sensações corporais para seguir. É crucial lembrar que a memória sensorial contém os registros mais primitivos do ser humano. Antes de ter faculdades afetivas e sensoriais o ser humano vive num mundo de sensações.
Somente mais tarde surgem as representações afetivas e intelectuais. Betty disse que tinha sómente três meses de idade e não tinha nada além destas sensações corporais. Eu the perguntei quem tomava conta dela e ela disse que sua mãe estava em algum lugar por perto e pegou uma almofada para representá-la. Eu lhe pedi que invertesse papéis. Como sua mae, a primeira coisa que fez foi pedir luvas. Eu nao tinha nenhuma em meu consuhorio e the disse isso.
“Então é impossível jogar o papel”, ela replicou. Assim, peguei dois pedaços de pano e ela os vestiu como luvas. Desde a idade de 17 anos, Hanna (a mãe) nunca havia tirado suas luvas, mesmo para dormir. Por um curto período seu marido proibiu-a de usá-las, mas durante a guerra, enquanto ele estava na frente de batalha, ela voltou a calçá-las. Ela me contou que era uma questão de higiene. Betty me contou, no papel de mãe, que quando era adolescente seu pai abusou sexualmente dela. Desde então passou a usar luvas para nao se sentir suja. Ela prosseguiu, dizendo:
“Gracas a Deus que eu tenho três filhas que nunca toquei diretamente, porque todo o contato de pele corn pele é sujo. Eu cuidei bem delas mas
nunca as acariciei, isso era desnecessário”.
Ela pode então ver a cena através da tecnica do espelho. Viu-se como urn bebê, viu sua mãe, as luvas e o avô estuprador. Comecou a entrar em contato com sua agressividade. Ela pegou uma das batacas (elementos usados para facilitar descargas agressivas) que tenho em meu consultorio e saltou à frente na direcão de seu avô, liberando ao mesmo tempo tanto sua agressividade quanto a de sua mãe. Em seguida, ela simbolicamente destruiu as luvas, olhou para sua mãe (representada por uma almofada) e chorou. Ela a abraçou e disse:
“Quanto eu precisei do contato corn seu corpo!”.
Havia se tornado muito importante para ela ser tocada por outra mulher. Betty havia tido contatos homossexuais para tentar recapturar essas sensações ausentes. Mas recobrar as sensações não foi suficiente para confirmar sua existência. Ela havia excluído o reconhecimento de suas necessidades, especialmente de contato corn os outros. Naquele momento, ela segurou o bebê (representado por uma almofada) e o acariciou. Eu recoloquei Betty em seu papel e notei que como bebê ela estava tensa. Gentilmente, acariciei sua cabeca e ela me segurou chorando:
“Eu quero ser cuidada”.
Nós investigamos o cluster um e eu me conduzi, principalmente, pelo papel da mãe. Betty havia recuperado uma agressividade saudável, autonomia e capacidade para ficar sozinha sem se fragmentar. Posteriormente, quando ela ja havia se recuperado, fizemos uma retrospectiva do que ela necessitava para ter saúde emocional e para ser cuidada. Ela somente se tornou capaz de recobrar a possibilidade de bons relacionamentos aós resgatar as funções do cluster três.
Sessão de seguimento
Durante uma sessão grupal, urn membro do grupo chamado Célia foi protagonista e chorou pela primeira vez. Suas feridas eram no cluster urn e a impediam de “se soltar”. Betty fez urn comentário crítico e a chamou de pessoa lacrimosa que não consegue compartithar. Nós entao representamos uma cena corn a irmã mais velha de Célia. Ela era a frágil, a que chorava, a doentia. Era protegida por todos. Betty ficou com ciúmes. Emma (sua irmã) nasceu em tempos de paz, quando era possivel chorar. Novamente a história foi contada através do papel de mãe. Quando Betty nasceu, durante a guerra, Hanna (a mãe) sentiu que teria sido melhor se Betty tivesse sido um menino. Apesar de que ela detestava meninos, a guerra era um tempo para homens. Seu desapontamento foi grande, mas o de seu marido foi ainda maior: ele não quis vê-la por varios dias. De dentro de seu papel Betty falou:
“Eu nunca quero estar com minhas irmãs porque elas sempre tem direitos que eu não tenho. Eu vou fingir que não me interesso em ficar com elas (ela simulou desdém, preferindo sua própria companhia)”.
Essa era sua matriz.
Sua atitude de superioridade em relação aos companheiros tornava desagradável conviver com ela, o que contrastava com seu papel de “mártir agradável” visto anteriormente. Isso criou vínculos difíceis, onde ela parecia fria e distante quando o que realmente queria era contato. No papel do “homem possível” em sua vida, Betty entendeu sua responsabilidade pelo que acontece a ela e, sem sentir-se culpada, corrigiu essas respostas inadequadas. Daí em diante Betty tomou posse de sua vida. Ela havia criado suas respostas, portanto agora podia lutar para mudá-las.
Feridas no cluster um são muito comuns em nossa cultura. A síndrome de Rambo, não precisa de ninguém, inclui homens e mulheres. Algum tempo atrás, um médico que havia acabado de sofrer um enfarto veio consultar-me dizendo:
“Minha vida vem sendo um treinamento constante para evitar necessitar de alguém. Em vez disso, eu fui treinado para cuidar das necessidades dos outros, a responder às necessidades urgentes de meus pacientes, de minha esposa e meus filhos. Minha mãe me super protegeu e meu pai se divorciou dela quando eu estava com três anos. Assim, por não ser uma criança boboca, eu tive que inventar o “homem de aço” para mim mesmo. Mas a dor da impotência e a necessidade de ternura e atenção infiltraram meu coração e tentar resuperá-las quase me custou a vida”.
A verdade sempre acha uma maneira de se expressar e quando nosso comportamento cria uma barreira, ela pode se alojar em nosso corpo, de onde tenta se fazer notar.
Pessoalmente, a compreensão do conceito dos 3 clusters iluminou-me considerávelmente, ajudado-me também a tornar as coisas mais claras para meus alunos. Alguns anos atráz eu fiz esperiências com outro modelo. Através de teste sociométrico tentei entender dinâmicas de personalidade usando sinais positvos, negativos e neutros. Mas não foi suficiente. Então usei minhas “asas” para desenvolver uma leitura sociométrica das psicodinâmicas, baseado numa modificação do teste perceptual. Ainda o utilizo em meus grupos de estudo, mas o coceito de cluster é muito mais útil. Mas existe espaço para evoluir mais além. Meu objetivo é abrir um espaço de reflexão, onde apresento os pontos essenciais sem qualquer pré-concepção sobre sua elaboração futura.
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EPILOGO
O psicodrama é um recurso rico e inesgotável. Oferece um mundo de aventuras perigosas e alguns momentos serenos. Alguns psicodramatistas abandonam a profissão e se voltam para outras técnicas. Eu tenho me dedicado a ensinar psicodrama por muitos anos e tenho observado que muitos dos que pararam de praticar, o fazem porque seu estilo pessoal necessita de um instrumento mais racional. Para dirigir psicodrama é necessária grande capacidade de dar rapidamente respostas adequadas aos estímulos e nem todos tem esta capacidade. Em momentos de crise pessoal, tive muita dificuldade em acessar minha espontaneidade. Nesses momentos, uso mais do verbal, o que me permite controlar melhor minhas emocões do que quando emprego o psicodrama.
Durante períodos de conflito social o sociodrama me permitiu ajudar aos outros, assim como a mim mesmo. Meu filho foi soldado na triste Guerra das Malvinas. Dois governos, cada um envolto numa paranóia, tolamente enviaram muitos homens para a morte. Junto com minha esposa, também psicodramatista, reunimos outros pais e através do psicodrama criamos um locus de anti-loucura em meio ao caos. Nós eramos setecentas pessoas compartilhando nossa angústia e desenvolvendo atividades para dar suporte a nossos filhos. Ao mesmo tempo sem saber disso, meus amigos Marcia Karp e Ken Sprague estavam usando sociodrama para trabalhar corn famílias de soldados ingleses. A grande descoberta de Moreno estava sendo usada para criar pontes de paz entre dois países, enquanto seus governos estavam se chocando em direção à morte e à destruicao. Moreno teria ficado muito orgulhoso. Ele acreditou na grandeza potencial dos seres humanos e criou um instrumento capaz de realizá-la.
Ao estudar o trabalho de Moreno, sempre tentei não cair na armadilha de desqualificá-lo devido à sua grandiosidade. Compreendi que como paranóico ou megalomaníaco era uma falha de interpretacão do seu “encontro de deuses”. Ele falou: “Eu sou deus”. Mas ele tambem nos convidou a sermos deuses ao lermos seus trabalhos. Um “encontro de gênlos”, onde a genialidade de um não estorvava o outro. Sòmente quando alguém está em contato com sua própria genialidade, ousando usar suas asas, este alguém estará pronto para ler e compreender Moreno. Cada uma de suas idéias está madura para novos desenvolvlmentos. As raízes nos oferecem nutrientes ricos para tranformá-las com nossas asas e para levá-las a lugares ainda não alcançados.
Eu vejo minha própria vida como um pacto contínuo entre minhas raizes e minhas asas. Quando desejo ficar tranquilo, descansando com segurança e senso de permanência, minhas asas logo se agitam para sair novamente. Então começa uma luta que algumas vezes encontra resolucão, outras não. Quando isso acontece, sinto-me sufocado até achar uma saída. Identlflco-me mais com minhas asas, mas amo todas as minhas raizes: meus pais, meus irmãos e minhas irmãs, meus professores. Psicanálise foi uma abertura para um mundo fascinante. Klein e a teoria das relações objetais deram-me respostas a algumas de minhas questões. Klein deu-me algo sólido para me apegar no mundo interno. Moreno brigou corn essas pessoas, mas aquelas eram suas asas, não as minhas.
Para terminar, gostaria de lhes contar algo mais sobre nossa amiga, Betty. Ela conseguiu voltar a seu país de origem, Alemanha, onde ficou por dois meses. Parou de se auto-punir como forma única de resolver sua culpa, seu conflito com os pais e com os outros. Ela rezou num campo de concentração, levou flores aos túmulos abandonados de seus avós. Chorou muito e com este choro lavou algumas de suas feridas. Voltou à Argentina e está tentando viver junto com seu companheiro. Querem adotar uma criança. Ao voltar para o grupo, aproximou-se de Célia, o membro do grupo a quem havia chamado de “pessoa lacrimosa”. Abraçou-a e chorou em seus braços.
Celia é judla.
Leituras 2 – Asas e raízes – Locus, Matriz, Status Nascendi e o conceito de Clusters
Tiragem desta edição (julho de 1994): 1000 exemplares
Coordenação Geral: Moysés Aguiar / Luzia Moreira / Antonio Ferrara
Uma reedição para o computador de Leituras da Companhia do Teatro Espontâneo.