Leituras 3: A psicoterapia de grupo sociométrico-psicodramática enquanto método
Grete Leutz
O termo psicodrama tem dois significados.
Por um lado, ele diz respeito ao método específico da psicoterapia de grupo sociométrico-psicodramática; por outro, à utilização de técnicas psicodramáticas dentro do referencial de outras psicoterapias. Nesta última acepção, o psicodrama é uma “força integradora na moderna psicoterapia” (Leutz, 1977).
A diferença entre os dois significados do termo é um pré-requisito importante para a compreensão dos desenvolvimentos atuais e futuros nesse campo.
Neste texto, levaremos em consideração o método, ou seja, a primeira definição.
Para compreender a essência e a significância do psicodrama como um método específico, é indispensável ter presente sua base filosófico-antropológica, bem como seus principais objetivos.
Nesta abordagem, o foco seria a operacionalização de seus conceitos básicos, através do uso de seu “setting” cênico e de suas técnicas específicas.
Isso nos permitirá diferenciar o psicodrama como um método autônomo – nesse caso, mais corretamente designado como “psicoterapia de grupo sociométrico-psicodramática”, por um lado e, por outro, o psicodrama como um conjunto de técnicas utilizadas por outras escolas de pensamento, que se beneficiam da ilustração cênica e do insight pela ação.
Examinando o psicodrama como um método terapêutico específico – cuja origem se encontra no primeiro quarto deste século – ficamos maravilhados com o fato de seu fundador, Jacob L. Moreno, referir-se a ele como a “terceira revolução psiquiátrica”. As três revoluções a que ele se refere são:
- a libertação dos pacientes psiquiátricos de suas cadeias, por Pinel;
- a descoberta e o estudo do inconsciente e da psicodinâmica individuais, por Freud, o que deu lugar à psicanálise;
- o estudo, por Moreno, das relações interpessoais e das interações, o que desembocou nm método de ação sistemático, a psicoterapia de grupo socio-psicodramática, referida aqui, de forma abreviada, como “psicodrama”.
O aspecto revolucionário desta abordagem reside na mudança do estudo e tratamento de pacientes individuais de forma isolada para a exploração e compreensão desses mesmos pacientes dentro da constelação de suas relações interpessoais, assim como em cenas pertinentes psicodramaticamente reproduzidas – “in situ et in actu“!
Trata-se de um avanço da maior importância na direção de uma terapia sistemática baseada na ação, numa época em que a abordagem terapêutica era ainda estritamente individual e verbal.
As bases filosófico-antropológicas do método
Parece ser relevante indagar como surgiu essa mudança revolucionária. Moreno desenvolveu-a com base em seu pensamento filosófico-antropológico que focalizava o encontro, nossa experiência existencial mais fundamental. O encontro nos possibilita viver e nos desafia a inter-relacionar, e a interagir desde o nascimento até a morte. Tais funções do encontro resultam na produção de cenas. A cena é o elemento e, em termos ontológicos, a criação de indivíduos socialmente agrupados, em interação.
O encontro, como ponto de partida para considerações posteriores, conduz o terapeuta, necessariamente, a uma abordagem sistêmica em sua atuação.
Assim, em sua primeira publicação, em 1915, cujo título foi “Convite a um encontro”, Moreno diferencia um encontro bem sucedido de um fracassado. Em razão deste último e de suas consequências, a caracterização das pessoas no texto exige que se levantem três questões simples, porém fundamentais.
De que consiste esta atuação? O que nos leva a ela? O que pode resolvê-la?
Objetivos
Ao levantar essas questões, da perspectiva da humanidade envolvida em interações e relações interpessoais permanentes, a atenção do terapeuta se desloca do indivíduo como tal para seus outros significativos.
Se tal mudança de direção da consciência e dos objetivos do terapeuta for ser levada a sério, deve-se encontrar uma abordagem terapêutica nova e adequada.
Essa necessidade aparece porque a situação, envolvendo o produto de indivíduos que se inter-relacionam e interagem, isto é, de um sistema, não tem sido até agora sistematicamente trabalhada. Isso é particularmente espantoso, na medida em que somos todos familiarizados com a poderosa influência que as situações exercem sobre nossos estados físicos e psicológicos.
Operacionalização
Cada situação é determinada pela interdependência de constelações interpessoais e cenas, ou seja, pelas relações interpessoais e interações das pessoas envolvidas.
Por isso mesmo, Moreno desenvolveu, para operacionalizar sua filosofia terapêutica, dois sub-métodos, como componentes integrais de sua abordagem abrangente em psicoterapia de grupo. Eles são: a sociometria, para o estudo e o tratamento de relações interpessoais e o psicodrama para o estudo e o tratamento da interação.
Gostaria de ilustrara interdependência de situação, relações interpessoais e interação, utilizando a figura de uma elipse. Esta figura geométrica mostra uma interdependência de seu formato, isto é, a circunferência muda sua forma em função da mudança de um dos focos ou em função da mudança de ambos.
Caso
Dora, uma mulher de 34 anos, procura ajuda com a queixa de fraqueza geral e insônia. Está preocupada com o fato de estar negligenciando seus afazeres domésticos, além de sentir-se irritada com seus filhos, de 10, 7 e 1 ano e seis meses de idade.
O que ela deseja é uma receita de remédio para dormir.
Na primeira consulta, ela se recusa a falar sobre sua família, mas concorda em participar de uma sessão de grupo aberto de psicoterapia, “só para experimentar”.
No decorrer da primeira sessão, Dora repete sua queixa física. Entretanto, após ter observado a dramatização de uma outra mulher, que encenou uma situação desagradável com o namorado alcoolista, Dora espontaneamente compartilha o problema que tem com a bebida do marido. O interesse, a simpatia e a compreensão que ela recebe do grupo a encorajam a explorar sua situação familiar. A pesquisa se inicia com um levantamento sociométrico da estrutura interpessoal da família de Dora. Na medida em que seus outros significativos não estão presentes, não podemos aplicar um teste sociométrico propriamente dito. O que temos é uma percepção que ela tem das eventuais escolhas e rejeições entre os membros da família, utilizando-se como critério o “estar juntos”.
No sociograma perceptual que Dora produz, os homens estão representados por triângulos e as mulheres por círculos, com as iniciais das pessoas representadas. As linhas pretas designam as escolhas e as cinzas as rejeições.
Dora ( D ) rejeita seu marido Ted ( T ), que de acordo com sua percepção deseja viver com ela como primeira escolha. Sua primeira escolha é o bebê (B), que é rejeitado pelo marido.
Sua única escolha adicional é a filha de sete anos, Ely ( E ), que responde a ela como sua primeira escolha. Além disso, o sociograma reflete a consciência que Dora tem da rejeição mútua entre o marido e o filho mais velho, Pedro ( P ).
Enquanto examina o sociodrama, Dora redireciona sua consciência emocional, passando das queixas físicas à sua situação interpessoal.
Como terapeuta, entretanto, pergunto se ela não gostaria de continuar psicodramaticamente a interação que costuma acontecer quando Ted chega em casa à noite. Dora escolhe membros do grupo terapêutico para representarem seus outros significativos.
Um espaço delimitado pelo grupo em semi-círculo é usado como palco. Ali Dora coloca algumas cadeiras para representarem a cozinha. Enquanto ela arruma a mesa para o jantar, Ted entra. Como Bob, o membro do grupo escolhido para o papel de Ted, não o representasse corretamente, Dora demonstra, através de uma inversão de papéis, a maneira como Ted fica sentado e, ao ver Pedro brincando no jardim, bronqueia com ele. Ainda no papel de Ted ela grita: “Você está de novo perdendo seu tempo. Aposto que não fêz nem metade de sua lição de casa hoje, que levaria uma hora para fazer”.
Invertendo os papéis com o rapaz que fazia seu filho, Dora responde como Pedro: “Você, Ted, é a pior das criaturas. Não vou jantar com você”. Ainda no papel de Pedro ela se dirige para o portão do jardim. O rapaz que fazia o papel de Ted corre atrás de Pedro e, gritando, arrasta-o para dentro da cozinha. Dora sai do papel e diz: “Exatamente, é assim mesmo que acontece!”
Ela mostra, em seguida, a reação de Pedro. Sentado, ele desabafa: “Se você continuar me maltratando eu vou embora daqui”, enquanto que a pessoa que faz o papel de Ted se acalma e, com um olhar amistoso responde: “Tudo bem, não há necessidade disso, desde que você faça sua tarefa mais tarde”. Dora, de novo no papel de Pedro, estranhamente, não retruca e até sorri para Ted. Voltando a seu próprio papel, Dora treme e diz ao marido: “Antes que você ponha Pedro para fora de casa, eu é que expulso você”. Na seqüência ela o empurra com tal força que o ator no papel de Ted se levanta, apanha uma garrafa e desaparece na sala de estar. Isso faz com que Dora tome consciência de que, na realidade, Pedro saiu antes. Caindo em lágrimas, ela exclama aterrorizada: “Os dois foram embora. Eles me deixaram sozinha”. O desespero atual de Dora não pode ser entendido apenas como uma reação à interação entre Ted e Pedro, na medida em que a filha Ely fica sentada, quietinha, à mesa. Deve ser a expressão da persistência de um velho papel, inadequado à situação presente. Nesse momento, a psicodramatista utiliza a técnica psicodramática do duplo.
Colocando-se atrás de Dora, ela expressa em palavras o sentimento do protagonista: “Mamãe, por favor, volte”. Em resposta à pergunta da terapeuta, “por que eles foram embora? ” Dora responde: “Eles brigaram e foram embora como sempre acontece em suas brigas. Eu estou com muito medo”.
Outra cena do passado, agora mostra o retorno de sua mãe. Em inversão de papel com a mãe, Dora expressa preocupação com o estado da filha e procura acalmá-la.
Mas quando volta ao papel de filha, Dora volta as costas para a mãe e saindo do papel exclama: “Gato escaldado tem medo de água fria”. Olhando para a terapeuta diz: “Depois de ter sido constantemente frustrada e depois do medo que senti quando minha mãe me abandonou tão de repente, seus carinhos me desagradam”. Espantada, acrescenta: “Eles me deram o mesmo sentimento de desprazer que agora eu tenho com Ted”.
Retornando da meta-realidade do palco psicodramático para a realidade do grupo, Dora, ainda mobilizada, dirige-se aos membros do grupo como se ela estivesse se referindo às três questões fundamentais de Moreno no que diz respeito às situações. Ela diz : “Vocês são os únicos que realmente sabem qual é a minha situação”; “A última cena indicou que a experiência anterior me fêz ficar muito assustada por estar sozinha, um medo que, acima de tudo, me trouxe, a mim e a minha familia, à nossa situação atual”; “Por favor, me ajudem a sair dessa situação”.
A cliente articula essas considerações com base no aprofundamento sociométrico de sua consciência a respeito da estrutura de sua família, assim como no “insight” pela ação, psicodinamicamente alcançado, a respeito do padrão de interações da familia atual. Além de tudo, reflete sua compreensão da gênese do papel que ela desempenha nessa interação.
O tratamento metódico prossegue, com a aplicação do teste psicodramático do futuro. Através de cenas fictícias, a protagonista explora em representações espontâneas o que poderia acontecer. Ou seja, a protagonista, desempenhando um novo papel (por exemplo, um papel de neutralidade ), evita interferir, em vez de superatuar em resposta a uma interação entre outros significativos – no caso de Dora, as brigas entre o marido e o filho.
O teste psicodramático de novos papéis permite ao protagonista experimentar um novo comportamento não apenas a partir de sua própria posição, mas também a partir da posição de outros parceiros da interação. Isto permite a escolha, entre os papéis testados, daquele que seria mais apropriado para a própria pessoa e ao mesmo tempo mais aceitável para os outros. Isso permite, como decorrência, que o protagonista desenvolva uma maior autonomia, flexibilidade de papel, auto-estima e responsabilidade.
( * ) In: The international forum of group psychotherapy, vol. I, N. 5, Summer 1992. Tradução: Moysés Aguiar (exclusiva para uso interno da Companhia do teatro espontâneo).
Leituras 3 – A psicoterapia de grupo sociométrico-psicodramática enquanto método
Tiragem desta edição (agosto de 1994): 1000 exemplares
Coordenação Geral: Moysés Aguiar / Marina da C.M. Vasconcelos / Antonio Ferrara
Uma reedição para o computador de Leituras da Companhia do Teatro Espontâneo.