Leituras 4: Psicodrama e Artaud: buscando intensidade cênica.

Devanir Merengué


Moreno disse “não” muitas vezes a autores e suas idéias, sempre em nome de conceitos que lhe eram vitais, como “espontaneidade”, “criatividade”, “momento” ou a premência da ação transformadora.

O tempo, no entanto, mostra o quanto teria sido fértil para o psicodrama a aproximação de Moreno a outros universos do saber.

O conhecimento advindo da prática psicodramática dispersa-se, muitas vezes, sem o fecundo diálogo com campos de interesse comum, como o teatro.

O psicodrama bem comportado e devidamente “psicologizado” poderia ganhar com a experiência teatral.

Não qualquer teatro. Não aquele feito para esconder conflitos, mas com uma proposta radical e passível de identificação com o projeto moreniano, que tem intenções assumidamente transformadoras.

Um teórico de inegável importância no teatro, que influencia gerações, é Artaud, com urna proposta incômoda e inquietante, o teatro da crueldade.

As histórias destes dois criadores, Artaud e Moreno, guardam semelhanças e diferenças, assim como o que diz respeito às suas ideias e produções.

Apresentam comportamentos estranhos, inusitados. Moreno se auto-classifica “megalomaníaco” em auto-biografia, e as referências de Marineau1 não deixam dúvidas quanto a algumas esquisitices. Artaud passa muitos anos de sua vida internado em hospitais psiquiátricos, para sua desgraça e glória, sendo, portanto, muito mais “maldito” que Moreno.

Em Artaud existe o culto à dor e ao sofrimento, que, na realidade, não passa de um artifício para encontrar a “vida verdadeira”. Essa parece ser a meta moreniana, estimulando sempre a criação espontânea e desprezando as conservas culturais.

Ambos são homens de ação, tendo buscado o reconhecimento e patrocínio para suas “invenções”, algumas vezes, bastante contraditórias.

Por exemplo, como explicar o chamado “teatro científico” em Artaud, com rígidos registros e marcações ou a clara influência da ciência positivista sobre Moreno na sua fase americana?

Os textos de ambos são marcados pela fragmentação, com conceitos imprecisos e atravessados pela poesia. Desprezam, quase sempre, o objetivismo e a racionalidade.

Artaud, é um marginal que se identifica com a vida dilacerada de Van Gogh. Envolve-se em escândalos e uso de drogas.

Moreno transita entre a arte e a ciência, a religião e a ciência. Mais facilmente aceito pelos artistas, passa grande parte de sua vida adulta tentando ser também aceito na academia. Moreno é um, digamos, indigesto.

Tento resumir, agora, seus projetos.

O que é o teatro artaudiano? Buscando a etimologia da palavra crueldade, vemos que cruor, de onde deriva crudelis (cruel) assim como crudus (cru, não digerido, indigesto) designa a carne escorchada e ensanguentada, ou seja, a coisa mesma privada de seus omamentos ou acompanhamentos ordinários, no presente caso a pele, e reduzida assim à única realidade, tão sangrenta quanto indigesta.2

O que Artaud entenderia por crueldade? Diz ele: “Estamos atulhados de sentimentos decorativos e inférteis, de atividades sem objetivo, unicamente destinados a serem pitorescos elementos de adorno”.3

Persegue uma “verdade”, uma vida pulsante sob a crosta da rotina, dos clichês e da burocracia; um resgate de alguma identidade na via crucis de seu desmoronamento.

Seus textos exalam sofrimento, desencontro, a crueldade buscada como forma de purificação.


“então poderão ensiná-lo
a dançar às avessas
como no delírio dos bailes populares
e esse avesso será seu verdadeiro lugar”4

Em Artaud existe a vontade de romper com o teatro para encontrar a vida. O teatro, como a peste, deve trazer a morte e com ela, a transformação.

Para isso, propõe o fim da “representação”. Faz o espetáculo para acabar com ele, para superá-lo5. Nesse sentido, pretende acabar com o teatro psicológico e objetivo, buscando um teatro metafísico.

Condena a palavra e o teatro passivo, que apenas “reflete” a vida, como em um espelho.

Quer mais: não a teatralização da realidade, mas o sangue, a destruição, o grito.

A “autencidade total” de que nos fala Gide6 precisa conduzir esse processo, em que o estético é inteiramente sacrificado, para dar lugar à tensão, à linguagem dos sonhos, à vazão do inconsciente, ao verdadeiro drama.

Rompem-se os limites palco-platéia.

O espectador deve “desaparecer”, pois ele, tomado, necessita sofrer no corpo a ação dramática.

São utilizados manequins gigantes, luz, música, máscaras, danças, gemidos, surpresas, todos os recursos possíveis para envolver os espectadores em um teatro mágico, um grande ritual.

O transe, o movimento mágico conduzido pelo encenador visa a busca da “crueldade”: que a vida se escancare para obtenção de uma fala anterior à palavra,7 para realizar uma terapêutica da alma.

Não são representados textos fechados (na proposta original, e não na possível influência artaudiana posterior), mas temas em que apareçam situações-limite como assassinatos, incesto.

Faz-se necessário perder urna certa teatralidade artificial dos espetáculos convencionais. Por isso, a representação deve modificar-se a cada reapresentação.

A espontaneidade dos atores deve aparecer em seus corpos, em suas respirações.

Em síntese, Artaud propõe um teatro radical, no sentido de retirar tudo o que é supérfluo.

A preparação dos atores, a movimentação destes durante o espetáculo, a organização do espaço, os elementos de cena visam “destruir”.

Tudo o que não tiver caráter de premência absoluta, de desespero, não merece estar em cena.

O teatro da crueldade coloca no palco o que se sabe a priori como terrível e desesperador, sem ter por objetivo primeiro o público.

Artaud rompe com a dualidade dramaturgo-encenador, enquanto Moreno propõe a mudança na relação ator-pessoa privada.

O espetáculo moreniano nasce da platéia.

Os personagens tomam a cena, levando-se em conta a intersubjetividade grupal.

O protagonista, devidamente aquecido (e mais, estando “fora-de-si”, no sentido que tenho dado a essa idéia)8, tem a função de trazer imagens, vivências, sentimentos, impressões. De um modo ou de outro, leva o grupo a deslocar-se de seu drama pessoal para o drama coletivo encarnado por ele.

A história pessoal daquele que encarna o protagonista, é transfigurada, ganhando intensidade que atingirá graus e formas diversos para com cada um dos envolvidos, naquele grupo específico.

O espaço psicodramático, como o “tememos” na Grécia Antiga, é região mágica, no sentido de que fatos imprevisíveis podem ocorrer.

São expulsos os belos discursos, as racionalizações, as soluções prontas: necessita-se, de novo, da fragilidade do não-saber, do despojamento.

Já não mais um ator recitando um texto previamente elaborado, nem o indivíduo contando a “sua” história.

O protagonista é um personagem9 escolhido por todos, ou pela maioria. Personagem atravessado por fios, dores, histórias, panoramas, fluxos de sentimentos. Personagem composto, como é composto todo ser humano sem se dar conta disso.

E mais, um personagem em conflito com o real, já não mais a medida de todas as coisas.

E assim, na produção de um personagem, a possibilidade de superação da própria dor, através da multiplicação.

Moreno e Artaud são inconformados frente à vida que se apresenta. Buscam a transfiguração da realidade.

Artaud mostra que a arte não é a imitação da vida, mas deve contatar algo muito mais amplo e intenso, da qual a vida é apenas um pálido reflexo.

Moreno deseja o homem em processo de criação, abrindo mão das conservas culturais, quando necessário.

Aí, talvez, teatro e psicodrama possam efetivamente tocar-se. Não na forma, mas na intenção.

Para além do teatro que espelha a vida, repetindo-se infinitamente, sem transformá-la em um psicodrama pobre porque submetido, de antemão, às “verdades psicológicas”, encarcerado, higienizado demais.

Não existe possibilidade de encontro em qualquer teatro, nem em qualquer psicodrama, mas apenas nos que permitem o aparecimento cias situações-limite, dos conflitos, do verdadeiro drama humano.

E, então, não é possível estar submetido à realidade, confirmando-a.

O psicodrama, olhado por este ângulo, necessita liberdade absoluta de criação.

Os personagens não podem responder ao sucesso ou ao fracasso da trama, nem estar submetidos à platéia (se esta não concorda com a cena, que intervenha!), mas necessitam compromissar-se com a vida.

Por ora, podemos apreender uma noção artaudiana: a intensidade cênica.

Mas como introduzi-la? Em primeiro lugar, faz-se necessário radicalizar o projeto moreniano, que perde-se tantas vezes em treinos adaptativos, esquecendo-se de conflitos vitais.

Como se Artaud nos dissesse: “Não percam tempo fazendo teatrinhos repetitivos, que apenas reproduzem a realidade, embora muitas vezes pareçam uma outra coisa. Busquem situações-limites, não importa se trágicas, cômicas, ou tragicômicas. Caso os estímulos sejam demais rotineiros, haverá menor possibilidade para variações espontâneas. Introduza o inusitado, seja criativo antes de mais nada, você, diretor! Busque a desestabilização nesse lugar tão apropriado às paixões, que é o palco. Para isso, a vida deve ser centro. Nem sempre bonita, nem sempre feia, às vezes trágica, outras ridícula, mas inevitavelmente pulsante”.

O psicodrama, neste diálogo, em momento algum perde sua identidade, no que tem de essencial.

Nem com isso proponho um psicodrama “novo”. Penso que essa vivacidade encontra-se em Moreno, especialmente no jovem Moreno. Este traduz a idéia de intensidade de modo multo claro.

Para nosso trabalho, podemos estimular a busca de símbolos menos óbvios, falar a linguagem dos sonhos, penetrar estados inconscientes pouco explorados.

Exemplifico com uma intervenção em um grupo terapêutico, que reclama do tom discursivo da sessão (“blá-blá-blá”). O diretor propõe que continuem a falar, no contexto psicodramático, utilizando-se desse som “blá-blá-blá” e depois, que busquem os personagens que mais se distanciem desse discurso conhecido. O personagem-protagonista escolhido pelo grupo é o de um homem cuja língua é enorme, e ele arrasta-a por onde caminha. No caso, um hospital psiquiátrico. Ele dirige-se para a capela e tem um diálogo agressivíssimo com o Cristo crucificado. Não é o caso aprofundar o sentido da cena para o grupo, nem fazer um entendimento técnico da sessão. Basta registrar o recorte onírico, delirante e multifacetado da cena.

Tirar do lugar, desengradar, oferecer janelas e paisagens desconcertantes.

O inusitado in-tensifica e essa tensão obriga à ampliação, à revisão, à transformação. Como em uma viagem por países estranhos.


  1. MARINEAU, R.F. Jacob Levy Moreno 1889-1974. Ágora. São Paulo. 1992 ↩︎
  2. ROSSET, C.O. O princípio da crueldade. Rocco Editora. Rio de Janeiro. 1989. ↩︎
  3. ARTAUD, A. O teatro e seu duplo. Max Limonad Editora. São Paulo. 1984. ↩︎
  4. ARTAUD, A, Para acabar com o julgamento de Deus. Em escritos de Antonin Artaud. IPM Editores. Porto Alegre. 1983 ↩︎
  5. VIRMAUX. A, Artaud e o teatro. Perspectiva. São Paulo. 1978. ↩︎
  6. GIDE, A. Apresentação em “Artaud, A ate e a Morte”. MM Livreiros. Lisboa. 1987. ↩︎
  7. ARTAUD, A. O teeatro e seu duplo. Ver referência 3. ↩︎
  8. MERENGUÉ, D. O estar-fora -de-si protagônico: algumas anotações, em Rosa-dos-Ventos da Teoria do Psicodrama. Ágora. São Paulo. 1994. ↩︎
  9. FALIVENE, L. O protagonista: conceito e articulações na teoria e na prática. Anais do 7º Congresso Brasileiro de Psicodrama. Febrap. ↩︎

Leituras 4 – Psicodrama e Artaud: buscando intensidade cênica.
Tiragem desta edição (setembro de 1994): 1000 exemplares
Coordenação Geral: Moysés Aguiar / Marina da C.M. Vasconcelos / Antonio Ferrara
Uma reedição para o computador de Leituras da Companhia do Teatro Espontâneo.