Leituras 08: Teatro espontâneo: reflexões sobre uma experiência

Moysés Aguiar, Valéria A. Barcellos, Lucia Callia, Cida Davoli, Antonio Ferrara, Marinilza Silva


“O psicodrama tem sua origem no teatro, onde identificou um manancial capaz de fornecer elementos ricos e valiosos para a compreensão e a transformação dos homens e da sociedade”

Esta frase abre o release divulgado em princípios de 1992, anunciando a proposta de constituição de um grupo de estudos de teatro espontâneo, em São Paulo.
Prossegue o documento:

“O teatro da espontaneidade de Moreno surge como um novo teatro, ‘um retiro seguro para uma revolução na surdina, oferecendo possibilidades ilimitadas para a pesquisa da espontaneidade ao nível experimental’.”

O teatro espontâneo constitui a matriz de todos os procedimentos socionômicos (psicodrama, sociodrama, role-playing etc.) e, como decorrència, se se deseja alcançar maior aprofundamento nessas práticas, não há como deixar de operar com essa matriz.

O acervo moreniano necessita ser pesquisado, buscando-se rastrear todas as propostas, ideias, portas entreabertas, referências, que se encontram dispersas na bibliografia, tomando-se como base não só os escritos do próprio Moreno, mas também os de seus discípulos e daqueles que nele se inspiraram.

Tal investigação entretanto corre o risco de se tomar entrópica e pouco promissora. se não se avançar um pouco mais, buscando compreender o teatro num sentido mais amplo, as formas que este vem assumindo ao longo da história da cultura, assim como as correlações entre o teatro espontâneo e as outras vertentes das artes cênicas (além do teatro propriamente dito, a dança, o cinema, a ópera. a televisão etc.).

Os benefícios que o teatro espontâneo auferiria dessa perquirição não se limitam à eventualidade de poder copiar uma ou outra maneira de fazer teatro, agregando-as ao seu repertório, mas vão mais além, no sentido de ampliar o seu próprio potencial criativo.

Embora essa linha investigativa não seja muito comum entre os psicodramatistas, já se podem identificar, hoje em dia, aqui e ali, alguns trabalhos que traduzem essa preocupação.

A gênese do grupo de estudos1

São relativamente freqüentes algumas iniciativas que visam oferecer à população sessões abertas de teatro terapêutico (sob diferentes designações, tais como psicodrama público, sociodrama público, teatro espontâneo, teatro do improviso, teatro de reprise etc.).

As notícias costumam dar conta de um quase inevitável esmorecimento do entusiasmo dos respectivos proponentes, por falta de público que prestigie os eventos.

Não é possível ainda identificar, com clareza, o que ocorre, a não ser essa renitente recusa, por parte da clientela potencial, da oferta que lhe é feita.

Dizem os mercadólogos que não é suficiente que se tenha um bom produto, se ele não corresponde às necessidades e desejos do mercado – seria por aí?

No período de gestação do grupo de estudos objeto deste artigo, houve uma tentativa de criar um espaço dessa natureza.

As sessões começaram a contar, entre os poucos participantes, com pessoas ligadas ao teatro.

O que elas buscavam era o que descreviam como “uma atuação mais verdadeira” ou, por outra, “fazer um teatro mais próximo das relações do cotidiano”.

Esse interesse fez com que tomasse corpo uma idéia antiga, qual seja a de constituir um grupo de pesquisas onde se procuraria tanto resgatar o teatro para a atuação sociopsicodramática como focalizar, no teatro, as relações do cotidiano.

A proposta básica, constante do mesmo release citado inicialmente, estabeleceu como objetivos:

  • aprofundar conhecimentos a respeito do teatro, em suas várias formas;
  • discutir as contribuições das várias modalidades de teatro para o desenvolvimento do teatro espontâneo;
  • realizar experimentos de teatro espontâneo;
  • desenvolver tecnologia específica;
  • divulgar os conhecimentos adquiridos;
  • promover cursos de formação de especialistas;
  • estimular a constituição de grupos congêneres e estabelecer com eles intercâmbio e ações conjuntas;
  • registrar, analisar e sistematizar experiências e vivências.

É com base na pequena história desse grupo – quase três anos – que fazemos as reflexões aqui relatadas.

Teatro espontâneo versus psicodrama

A acepção com que se utiliza o termo “teatro espontâneo” está longe de alcançar alguma unanimidade entre os profissionais do psicodrama. A referência mais comum é histórica: o que J.L.Moreno fazia no início de sua carreira tinha esse nome.

Havia um local (o Stegreiftheater) onde aconteciam espetáculos, com encenações que mesclavam no elenco atores profissionais e membros da platéia.

O palco tinha uma concepção original, circular, com vários níveis.

Foi uma experiência que não deu muito certo, como tal, tendo com o tempo dado origem ao psicodrama terapêutico.

Daí que fazer teatro espontâneo, hoje, é uma aventura a que poucos se atrevem, até porque implica em, de certa forma, retomar o que não deu certo.

Mas existe toda uma história dos desdobramentos dessa experiência inicial, principalmente no seu subproduto mais popular, o psicodrama terapêutico, que justificam o interesse que ela ainda desperta.

O Grupo de Estudos de Teatro Espontâneo, o que ele faz tem a ver com o psicodrama terapêutico?

Essa é uma pergunta que fazem tanto os de fora quanto os de dentro dele.

Antes de tentar respondê-la, é necessário que se teçam algumas considerações preliminares.

A ideia mais vulgar que se tem do que acontece no teatro espontâneo é de que nele qualquer pessoa pode entrar em cena, durante uma dramatização, no momento que quiser, enquanto que no psicodrama, essa entrada estaria condicionada à permissão do diretor, que por sua vez tentaria salvaguardar o projeto do protagonista.

Esse pensar coloca o teatro espontâneo muito próximo da definição de jogo dramático, onde ocorre a participação cênica de todos os membros do grupo, desaparecendo por conseguinte a distinção entre palco e plateia, essencial ao teatro.

O conteúdo do jogo dramático é necessariamente ficcional, o que exclui, em princípio, a possibilidade de se ter um protagonista (figura do teatro) e de se levar à cena algum “conteúdo pessoal”.

A autorização prévia e irrestrita para que cada participante faça o que bem desejar, no teatro espontâneo assim concebido, é que garantiria a espontaneidade, cabendo ao diretor apenas “colocar um pouco de ordem no galinheiro”, quando necessário, promovendo o entendimento e a articulação entre as diferentes ações e iniciativas.

No chamado “psicodrama público”, ou “sessão aberta de psicodrama”, aí sim, se poderia ter um protagonista, que encenaria um conflito pessoal, pesquisado e trabalhado com a ajuda do diretor e do grupo, com todos os cuidados que se recomendam em situações dessa natureza.

O teatro espontâneo que o Grupo vem desenvolvendo, entretanto, tem uma concepção diferente dessa.

Para ser caracterizado como teatro, o teatro espontâneo precisa, em primeiro lugar, respeitar a regra fundamental que é a existência de um subgrupo de pessoas que representam uma cena e um outro subgrupo que observa.

O protagonista é o eixo da produção dramática, qualquer que seja o tema abordado.

É falsa a antinomia entre ficção e conteúdo pessoal: tudo o que se leva ao palco é fantasia, invenção, ainda que possa, eventualmente, inspirar-se na história de vida do ator que desempenha o papel protagônico.

O teatro espontâneo é o teatro interativo levado às últimas consequências.

É o teatro do improviso2, que se fundamenta numa nova estética, ancorada na criatividade do aqui-e-agora.

Nesse ponto se distingue das formas mais usuais de teatro, em que o espetáculo é cuidadosamente preparado com antecedência, ainda que cada apresentação possa ser considerada um momento único.

Esse teatro espontâneo é necessariamente terapêutico, lato senso, uma vez que persegue metas transformadoras, tanto ao nível do indivíduo quanto da comunidade.

O alcance dessa transformação varia muito de situação para situação, mas tem como ponto básico a experiência de participação num processo coletivo de expressão artística.

O potencial expressivo da arte, como sabemos, é ilimitado e, vistas por esse prisma, as possibilidades do teatro espontâneo também o são.

Daí o fato de que a grande questão, no momento, para o Grupo, é saber que fatores poderiam ampliar o potencial artístico, a criatividade, a linguagem estética de um espetáculo, e como tais qualidades se articulariam com o alcance terapêutico.

Os questionamentos de que se fala aqui estão sempre presentes no labor do Grupo, tanto nas atividades internas quanto nas apresentações públicas.

No entanto não conseguiu ainda – se é que algum dia vai conseguir – fechar uma posição consensual nem mesmo a respeito dos objetivos do teatro espontâneo: terapia, entretenimento, cultura, didática, provocação, desenvolvimento da espontaneidade, tudo isso junto, apenas uma parte, quantas outras alternativas!

Além do mais, há uma consciência de que pode haver uma tensão entre os objetivos de quem promove o espetáculo e aqueles do espectador.

Mas por outro lado, a própria busca de uma resolução desse conflito acaba sendo a inspiração daquilo que se faz e que se denomina teatro espontâneo.

Uma coisa é verdade: apesar de ser muito claro que o psicodrama é derivado do teatro espontâneo, no presente momento é do primeiro a tradição básica que faz o pano-de-fundo do segundo, invertendo-se portanto a equação.

Numa analogia com a técnica fitológica do enxerto, o cavalo é o psicodrama e o ramo enxertado é o teatro espontâneo: é como se nas condições atuais, não fosse possível fazer teatro espontâneo sem ter um mínimo de formação psicodramática.

O papel do diretor

Num dos primeiros encontros do Grupo, um dos participantes (ator e diretor de teatro convencional) levantou uma questão: será que o teatro espontâneo deve ter diretor?

Sua hipótese era de que a “direção”, na medida em que fosse dada por um elemento externo ao indivíduo, constituiria, logo de princípio, um comprometimento da espontaneidade.

O Grupo decidiu, então, fazer um experimento, uma sessão sem diretor.

O que aconteceu foi uma situação muito rica, conquanto caótica, conquanto tenha o protagonista (aconteceu naturalmente!) saído da sessão não muito bem.

As discussões sobre essa experiência, associada a outras evidentemente, conduziram a algumas formulações interessantes.

Uma delas diz respeito ao diretor, figura que passou a ser considerada desde então indispensável, definido como um fator sociodinâmico de catálise da espontaneidade grupal.

Ele é um membro do grupo como qualquer outro, cabendo-lhe todavia um papel diferenciado.

Suas intervenções também dão rumo à cena, tanto quanto os desejos do protagonista e as contribuições dos demais atores e da platéia.

Nesse sentido, o diretor não é neutro, e essa condição precisa ser muito mais assumida do que escotomizada.

A maneira como um diretor dirige já constitui, em si, uma contribuição ao que vai acontecer, independente de qualquer outra forma de intervenção no processo criativo.

Sua presença é, pois, fundamental, uma vez que a espontaneidade não pode ser confundida com caos, nem definida como ações voluntariosas, desordenadas e desreferenciadas.

Pelo contrário, um dos ensinamentos mais importantes da teoria psicodramática da espontaneidade é que ela caracteriza um tipo muito especial de atuação, sempre vinculada a uma situação específica, atuação essa que se distingue principalmente por não desconsiderar a concretude do aqui-e-agora (o grupo, a tarefa, a articulação).

É o levar em conta a especificidade da situação que condiciona a busca de uma solução criativa e adequada para o problema em pauta.

No caso do teatro espontâneo, cabe ao diretor facilitar as ações espontâneas, através de pelo menos dois tipos de intervenção:

  • através do aquecimento (sem o qual não há ato espontâneo;
  • através da canalização das diferentes contribuições, de forma também espontânea e criativa.

Essa disciplina tem como referência máxima a tarefa assumida: fazer teatro.

Ora, por definição, como já mencionado anteriormente, a função teatral não se estrutura sem que se caracterizem dois poios dialéticos: um subgrupo que atua, outro que observa.

Ao diretor de teatro espontâneo cabe velar por esse processo, procurando garantir que a platéia acompanhe o que está sendo atuado no palco.

Para tanto, duas medidas se impõem:

  • Delimitar o espaço cênico
    A falta de definição, percebeu-se na experiência do Grupo, trava o trabalho, na medida em que se exige um esforço muito maior de discriminação entre os âmbitos da realidade e da ficção, entre personagens e espectadores.
  • Evitar a ocorrência de cenas simultâneas
    Mesmo o recurso tradicional de congelar cenas acaba sendo uma técnica difícil de ser aplicada, pelo fato de fazer a contenção do fluxo criativo de uma parte do elenco, contenção essa freqüentemente transgredida por força do impulso de continuidade do processo criativo em curso.

Mesmo o recurso tradicional de congelar cenas acaba sendo uma técnica difícil de ser aplicada, pelo fato de fazer a contenção do fluxo criativo de uma parte do elenco, contenção essa freqüentemente transgredida por força do impulso de continuidade do processo criativo em curso.

O Grupo tem preferido que. na direção, seja focada uma cena única, sinalizada pelo protagonista, para a qual todos podem potencialmente contribuir.

Se não existir chancela para a cena que está sendo levada, é preferível que o diretor procure descontinuá-la e substituí-la por outra ao invés de permitir a criação de focos divergentes.

O texto e seu autor

Num outro experimento significativo, o diretor da sessão (professor universitário de teatro) resolveu propor ao grupo que encenasse uma peça que ele (no contexto social) estava escrevendo.

Escolheu os atores e foi informando a eles o enredo, passo a passo. pedindo-lhes que fossem representando.

Na medida em que a encenação foi ganhando força, os atores passaram a recriar o texto, arrebatando ao diretor a exclusividade dessa função.

O diretor aceitou o jogo e continuou contribuindo, a partir do seu papel, com a introdução de fatos novos, aos quais os atores iam respondendo, numa verdadeira sinfonia de co-criação.

Essa vivência permitiu romper com a visão clássica do psicodrama, em que o diretor de certa forma se subordina ao texto do protagonista, condicionando a este também a atuação dos outros atores.

Experimentos posteriores vêm demonstrando o quanto as formas de produção da narrativa, no teatro espontâneo, podem ser criativas e inovadoras.

Tanto quanto o seu conteúdo, ou seja, as estórias inventadas e encenadas.

A questão do aquecimento

O importante é conseguir um bom aquecimento. Essa afirmação pode parecer óbvia mas, na prática, inúmeras questões técnicas e teóricas se colocam em torno desse aspecto do trabalho.

A constatação mais freqüente é de que, em muitas ocasiões, quando a qualidade do espetáculo foi comprometida (ainda que se possam detectar alguns aspectos interessantes e significativos), o que houve foi exatamente problemas no aquecimento.

O que constitui, então, um bom aquecimento?

Essa é a grande pergunta, para a qual o Grupo vem desenvolvendo um esboço de resposta.

  • Faz parte do aquecimento um contrato claro com o público.
    Nem sempre as pessoas têm expectativas consentâneas com as propostas da equipe profissional, sejam essas pessoas “leigas” (cujo contato prévio com teatro espontâneo e seus derivados, principalmente o psicodrama, é pequeno ou não-profissional) ou “da área” (psicodramatistas, principalmente, cuja visão pode estar contaminada por experiências e ensinamentos prévios, não condizentes com o aqui-e-agora).
  • É preciso muito cuidado para não “passar a perna” na platéia.
    Isso significa que não basta ir envolvendo gradativamente ás pessoas no projeto. É preciso explicitar desde logo o que se pretende, com palavras claras e concisas. Tal explanação não objetiva apenas informar a respeito da tarefa global, mas sim fazer uma conexão do público com o aquecimento prévio da equipe, enquanto equipe. O Grupo tem realizado sessões públicas com tema previamente definido e difundido.
  • Uma das experiências de aquecimento
    Nessa perspectiva, tem sido relatar o percurso feito até se chegar ao título da sessão.
  • A acepção de aquecimento
    Com que o Grupo está operando, mais recentemente, é a de um processo de preparação (que leva a “estar pronto para”, ou “preparado para”).
  • Para funcionarmos como uma coletividade
    Que age com uma mesma finalidade (fazer acontecer a sessão de teatro espontâneo), é preciso primeiro que estejamos todos “preparados para” a ação conjunta (co-ação).
  • A primeira vertente do aquecimento
    É, grupalizar todos os participantes. A grupalização não significa apenas levar as pessoas a uma consciência de coletividade voltada para uma tarefa específica. Vai além, na medida em que traz à baila questões de tempo e de espaço, quando e onde se dão as relações entre essas pessoas, quando e onde a missão comum vai ser concretizada. Isso nos conduz ao conceito de globalização – que é maior que o de grupalização – como uma das pré-condições para um bom teatro espontâneo.
  • Dentro da sistemática própria do teatro espontâneo
    Todos os participantes são chamados a atuar em pelo menos dois papéis básicos: o de ator e o de autor. Devem portanto ser preparados para ambos.
    O ator deverá estar em condições, inclusive corporalmente, de atuar, de representar, de comprometer todo o seu ser com o personagem que vai encarnar, de interagir com os demais personagens, permitindo o fluxo da fantasia e da emoção.
    O autor vai participar da construção do texto, e isso tanto quando sobe ao palco para representar um dado personagem, como também quando fica na platéia e acompanha o processo de elaboração do enredo, sendo neste caso chamado a fazer sugestões e á interferir sempre que julgue necessário. Só que essa colaboração não se faz através da crítica ou da análise intelectual do que está se passando, mas sim na forma de propostas cênicas, o que vale dizer que o participante deve atuar como dramaturgo.
  • Esses aspectos do papel de participante
    Quando não devidamente contemplados, implicam um despreparo que prejudica o trabalho.
  • A preparação se faz tão indispensável
    Em alguns casos, quando se constata que está faltando aquecimento, numa ou noutra direção, impõe-se a providência de até mesmo congelar a cena, ou seja, suspender por um momento a representação, até que essa deficiência seja sanada.
  • Por outro lado, há que se considerar a diferença entre preparo mental e físico.
    Alguns aquecimentos, na prática tradicional, privilegiam a atividade corporal e, de um salto, tentam desembocar na dramatização, o que ocasiona uma série de dificuldades. Da mesma forma, quando se tenta estabelecer um caminho para a ação através do pensamento, da reflexão, da memória, da mente, enfim, são outras as barreiras, mas o efeito global paralisante tende a ser equivalente. A rigor, esses dois aspectos nunca estão dissociados, sendo a sua caracterização apenas uma referência para ajudar a compreender o que acontece. Mas a ênfase exagerada num ou noutro pode mostrar-se danosa para o projeto de improvisação cênica coletiva, ocasionando queda de intensidade dramática, sequenciação pobre ou emperrada do enredo.
  • Uma outra concepção de aquecimento
    É a de que todas as ações devem convergir para a definição de quem é o protagonista. Com tudo o que essa idéia tem de verdadeiro, há o risco de ser tentar um parto a forceps, que pode até resultar num bebé com vida, mas lesionado. Ou seja, chegar ao protagonista não é suficiente, uma vez que para atuar protagonicamente a pessoa escolhida tem que estar em condições de conectar-se emocionalmente com o grupo, de atuar como personagem e como dramaturgo.
  • Papéis complementares
    Por outro lado, sem que sejam devidamente cuidados os papéis complementares a serem desempenhados pelos demais participantes, o protagonista pode correr o risco de ficar abandonado à sua própria sorte, frustrando-se numa cena que não se desenvolve a contento.

Funções na equipe

Na melhor tradição psicodramática, a equipe que promove as sessões (designada unidade funcional) é composta de um diretor e de um ou mais egos-auxiliares.

A participação destes últimos apresenta matizes as mais variadas, dependendo das peculiaridades da relação que se estabelece dentro da unidade funcional.

Nas experiências do Grupo, conquanto o papel de diretor venha sendo cada vez mais fortalecido e compreendido, seus complementares – os demais membros da equipe – estão num estágio menos avançado em termos de compreensão e de definições técnicas.

O próprio nome “ego-auxiliar” vem sendo objeto de investigação.

Ele foi cunhado para designar o papel do ator que entra em cena na sessão psicodramática, na qualidade de terapeuta que “empresta o ego” ao paciente, numa analogia com o que acontece na relação mãe-bebê ou, por extensão, adultos-criança.

No teatro espontâneo, esse conceito fica um pouco restrito demais, porque o ator-membro-da-equipe que contracena com o ator-vindo-da-platéia não precisa estabelecer uma complementaridade baseada nesse modelo, ainda que possa encarregar-se de alavancar a cena, de garantir o nível de intensidade cênica, de aquecer o protagonista durante a atuação e mesmo os demais atores-vindos-da-platéia.

Numa primeira fase da história do Grupo, os membros da equipe que não tinham encargos específicos como os de diretor e de ego-auxiliar (na acepção tradicional), poderiam misturar-se à platéia e até mesmo se candidatarem ao papel protagônico.

Essa fase foi superada, na medida em que se foram definindo algumas outras necessidades mais diferenciadas, em termos de time.

Atualmente a experimentação gira em torno de alguns pontos básicos:

  • nem todos os membros da equipe devem ser, necessariamente, diretores (no começo, instituiu-se um rodízio de direção, nos espetáculos públicos e nas sessões internas, de modo que todos os integrantes do Grupo eram estimulados a desenvolver habilidades de direção);
  • há possibilidade de se trabalhar com dois tipos pelo menos de direção: uma direção de aquecimento e uma direção de cena, sendo que um dos dois assume uma espécie de coordenação geral do espetáculo;
  • nem todos os membros da equipe que não estejam na direção devem funcionar como atores;
  • começam a ser consideradas e experimentadas tarefas complementares, tais como a sonoplastia, a iluminação, o camarim, a cenografia, a preparação da equipe, como aspectos a serem desenvolvidos e aprofundados.

No teatro convencional, existe uma dependência estreita entre o palco e o auditório, de tal forma que um sem o outro não pode viver.

O protagonista

A qualidade do espetáculo se perde quando o ator, por mais bem ensaiado que esteja, não se sente conectado com o público e por ele amparado e estimulado.

No teatro espontâneo, essa característica é altamente potencializada, sendo que a relação se faz mais sensível entre o protagonista e os demais participantes, especialmente os da assistência.

O protagonista é o porta-voz do drama; o grupo acompanha, confere, validando ou não as emoções pessoais envolvidas na encenação.

Isso é particularmente verificável no teatro espontâneo, quando aplicado à terapêutica de conflitos individuais, o psicodrama.

Neste, o protagonista é o fio condutor da atuação de um conflito pessoal amplificado, inicialmente tido como privado, tornado público na medida em que é concretizado em cena, tornando-se compartilhável, tangível e questionável.

No teatro espontâneo se dá exatamente o mesmo, embora nem sempre de forma tão escancarada, tão digital.

De qualquer maneira, é o protagonista que alavanca o roteiro.

A forma como a platéia contribui para elaborá-lo é um dos mais desafiadores caminhos da pesquisa do teatro espontâneo.

A bem dizer, existe na tradição psicodramática uma certa confusão em torno do significado do protagonista.

No geral, ele é confundido com o paciente da vez, ou seja, aquele cujo problema pessoal, trazido à sessão terapêutica, merece um olhar especial, o que significa oferecer-lhe a oportunidade de levar ao palco os seus conflitos.

Nesse sentido, ele é o que expõe sua intimidade e, portanto, necessita de algumas garantias muito especiais em termos de clima grupal, de contexto social, de estilo de direção etc., para que não saia ferido, lesado ou estigmatizado dessa experiência.

Esse modo de definir o protagonista é que permite estabelecer restrições ao “psicodrama público”, um procedimento que, por esse olhar, deveria ser evitado, sob pena de “queimar” o psicodrama, uma vez que mesmo a melhor condução não pode oferecer segurança quanto aos desdobramentos extra-sessão.

Visto por esse mesmo ângulo, enseja a corruptela da afirmação moreniana de que no psicodrama o sujeito é o indivíduo e no sociodrama o grupo, transformada na definição esdrúxula de que no psicodrama o protagonista é o indivíduo e no sociodrama o protagonista é o grupo.

O sociodrama, assim considerado, trabalha, na verdade, sem protagonista (se protagonista quer dizer o “primeiro” combatente, é inadequado dizer que todo o grupo vai “primeiro”), e com isso se pretende evitar os riscos de uma eventual exposição pessoal de qualquer dos participantes.

As ferramentas sociátricas preferenciais são, nesse caso, os jogos e os jogos dramáticos.

Para o Grupo, tem ficado cada vez mais evidente que não é possível construir um espetáculo com bom nível estético e de aprofundamento temático, se não se estrutura a produção dramática em torno de um dos personagens (esse personagem é o protagonista).

Foram várias as tentativas de trabalhar sem protagonista ou com cenas pluri-axiais.

Algumas delas ocorreram até por inabilidade do diretor de detectar o emergente grupal e de conduzí-lo à protagonização, assim como de manter o caráter protagônico do personagem, na seqüência da cena representada.

A constatação é de que por esse caminho se torna muito mais difícil conseguir uma narrativa consistente, na medida em que alguns fatores como a ansiedade coletiva, os mecanismos eufóricos, os comportamentos histeriformes, a competitividade, acabam determinando um clima de caos (o avesso da espontaneidade).

As contribuições de atores coadjuvantes, que muitas vezes configuram a proposta de uma nova cena, tendem a ter efeito fragmentador, quando não se tem um critério claro para integrá-las.

Nesse sentido, a definição de um eixo facilita a criação coletiva, garantindo a continuidade narrativa, a articulação das várias etapas cênicas, e a busca de uma finalização (finalização entendida como resolução cênica e não como happy end, “eureka!” ou solução a ser aplicada na vida real).

Assim se podem obter, com maior facilidade, alguns efeitos desejados, tais como a convergência de cenas, a continuidade da estória, a costura da verdadeira cena.

O papel protagônico nem sempre coincide com os papéis que o ator que o encarna desempenha na vida real.

No entanto, são radicalmente analógicos – e essa é a linguagem do teatro.

Ou seja, qualquer que seja o papel que o indivíduo venha a desempenhar no contexto dramático, sua atuação refletirá de alguma maneira a sua inserção no social, e isso vale tanto para os atores-vindos-da-platéia quanto para os “profissionais”.

Se, por alguma imposição técnica, esse tipo de comprometimento tiver que ser evitado, não há como fazer teatro e, muito menos, teatro espontâneo.

A grande dificuldade é a escolha do protagonista, ou seja, a identificação do emergente grupal e sua designação para o papel principal da estória a ser narrada.

Há duas tendências: uma é incluir essa escolha entre as prerrogativas inalienáveis do diretor, cabendo a este recorrer à ajuda do público somente quando considerar que necessita dela para fazer a sua decisão; outra é estabelecer que o próprio grupo deve fazer essa opção, auxiliado por jogos sociométricos, ficando desde logo convalidado o protagonista pelo fato de ter sido apontado pelos seus parceiros.

Entre as duas, ainda há muito o que se pesquisar. No entanto, começa a ser desmistificado o protagonista como o único membro do grupo que poderia exercer o papel central da trama: na verdade, todos os participantes expressam, de alguma maneira, a totalidade do grupo (dentro de urna perspectiva holística, o todo está contido na parte).

É possível que se possa pensar que num dado momento a revelação do grupo pode ser alcançada mais facilmente através de um dos seus membros (ou alguns) mais do que de outros, mas trata-se de uma questão de grau e não de grandezas discretas.

E, ao final, o compartilhamento?

A terceira fase da sessão, tão cara ao psicodrama, vem sendo objeto de reflexões muito especiais, na experiência do Grupo.

No teatro convencional, a força do espetáculo reside na própria representação, que pode gerar um impacto maior ou menor nos espectadores.

Estes vão levar para casa essa experiência que viveram, elaborando-a, cada qual ao seu modo, sem nenhuma necessidade de que explicitem seus sentimentos perante os atores ou o diretor, nem tampouco que lhes seja feita uma análise racional ou lhes seja dada uma explicação do texto, do desempenho dos atores ou qualquer outro complemento.

Será que esse modelo também se aplica ao teatro espontâneo?

Não estaríamos diante de um caso particular de “psicologização” ou “psicologismo”, ao criarmos um espaço para as pessoas falarem sobre o que viveram?

Em muitas ocasiões, esses comentários sabem a um esvaziamento do impacto da cena; ou se equiparam ao ridículo de tentar explicar uma piada.

O que o Grupo tem como objetivo pesquisar é se, nesses aspectos negativos, se trata de uma condução inadequada, ou se, realmente, o ideal é deixar que a cena diga tudo o que é possível dizer naquele momento, conformando-se com os limites então alcançados.

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No início, o Grupo funcionava apenas como um espaço de discussão, fazendo laboratórios internos.

O temor de ir à rua chegou até a provocar a perda de alguns de seus membros.

A pouco e pouco, entretanto, foi-se abrindo para a comunidade, trabalhando num primeiro momento com grupos institucionais, até atingir o estágio atual, quando realiza pelo menos um espetáculo público por mês.

Reúne-se semanalmente para avaliar ps espetáculos, cada vez que são realizados, para preparar os vindouros, para discutir questões técnicas, para clarear conceitos, para definir linhas de experimentação.

As apresentações públicas foram feitas inicialmente em uma sala de consultório psicodramático; depois, na sede do diretório nacional do Partido dos Trabalhadores, em escolas de psicodrama, num espaço cultural oficial (descontinuado por obstrução política quando se passou de uma administração petista para uma malufista), depois numa pizzaria-bar (o que não foi conveniente aos proprietários, do ponto de vista comercial), até mesmo numa loja de antigüidades, e ultimamente acontecem no auditório de uma escola de música.

A idéia é avançar ainda mais, possivelmente partindo para a utilização de uma sala própria de teatro, incluindo-se no circuito cultural.

Um sonho que tem de tudo para se tornar realidade.

Especialmente se essa experiência puder inspirar a participação de outras pessoas, tanto nesse Grupo, quanto em outros que venham a formar-se, desenvolvendo essa idéia, formulando novas contribuições, explorando a fundo as potencialidades do teatro espontâneo.

Com certeza, tudo isso levará o próprio psicodrama a fortalecer-se em todos os sentidos.


  1. Integram o Gupo de Estudos do Teatro Espontâneo, atualmente, além dos autores, Claudia Ferreira e Vera Márcia de Lima. ↩︎
  2. O Grupo tem preferido divulgar seus espetáculos como “teatro do improviso” e não como “teatro espontâneo”, considerando que essa designação é mais compreensível para o público leigo. ↩︎