Leituras 09: Catarse de integração: uma pequena viagem etimológico-existencial
Albor Vives Reñones
Piolhos, de Aristóteles a Freud
catar-se:
catarse
José Paulo Paes1
Roteiro – O Cicerone
Para tomar o trem da catarse de integração no primeiro ponto, é necessário viajar até a Grécia do século V antes de Cristo.
Antes um pouco, se quiser pegar lugar na janela e ver bem toda a paisagem que foi-se transformando de lá para cá.
Passa-se pelo teatro grego e por Aristóteles – que é um ponto turístico muito visitado – para se conseguir chegar até uma ladeira íngreme que se chama cristianismo, mas que no início o pessoal deu o nome de platonismo.
Lá do alto dessa ladeira se vê uma paisagem com muito contraste, parece foto preto-e-branco, não dá prá enxergar nada com meio tom, nem colorido, parece que devastaram tudo, sabe?
Tem uma estátua que nós vemos depois de um tanto, que fica olhando para o umbigo e se chama Descartes.
Na verdade; tem um monte dessas estátuas que foram montadas umas sobre as outras, parecendo um edifício.
O último andar desse prédio é muito positivo.
O engraçado é que quem está dentro só consegue ver o seu próprio reflexo nos espelhos que ficam no lugar das janelas.
Já imaginou uma sala panorâmica que não dá para ver o lado de fora?
Aí nós chegamos perto do fim do trajeto, tem umas coisas meio esquisitas, lembra o Aleph do Borges, aquela esfera que continha todo o universo passado, presente e futuro dentro de si, você olha para ele e vê o mundo todo!!!
Como é que fizeram para colocar tanta coisa dentro de um tiquinho de nada?
Eu não sei, mas falaram que aqui não dá para jogar nada fora, porque se tirar um pedaço, tudo perde a graça.
O ponto final é um quebra-cabeças que se chama Moreno, cada lado que você olha tem uma coisa diferente, vai ver que ele tentou brincar de Aleph mas não sabia direito como!
O fato é que depois daqui ou se vai a pé – e já vou avisando: é uma caminhada boa – ou se espera até construir mais algum ponto novo, dizem que já vieram fazer pesquisa de solo. Quer ir ver as fundações?
Uma coisa de cada vez.
Desde os primórdios do homem são feitas perguntas referentes a suas origens, à origem do cosmo, às razões de existir e ao destino que o aguarda.
Todos os povos foram criando a sua maneira de compreender estes questionamentos e as respostas para poderem lidar com os fenômenos naturais, humanos, e aqueles que saem do limite do cognoscível.
Infelizmente, pouco resta dos registros primevos.
Alguns relatos escritos de vários pontos do mundo nos contam experiências gregas, hindus e polinésias.
Registros pictóricos nos permitem interpretar concepções primitivas dos povos hoje situados ná Europa, no Egito, no Oriente Médio etc..
Com todas essas restrições, no entanto, temos a possibilidade de vislumbrar um pouco do modo relacional que existiu entre o humano e a divindade.
O primeiro objetivo deste texto é retomar esse conhecimento, permitindo-nos uma contextualização do fenômeno religioso na cultura humana.
Isto é de fundamental importância para que possamos alcançar o segundo objetivo, avaliar qual o significado que o termo catarse possuiu na sua origem, acompanhando sua transformação com o passar do tempo e, principalmente, investigar se é usado, hoje, dentro do psicodrama, coerentemente com a proposta transformadora que Moreno lançou.
Com o roteiro em mãos e estas informações preliminares na cabeça, vamos iniciar o trajeto.
RITOTIMITOTIRITOTIMITO
Os primeiros dados que possuímos são os registros míticos que alguns povos nos deixaram escritos ou gravados em pedras.
Ao seu lado existem (ainda que em número reduzido) alguns relatos de rituais.
As culturas antigas em geral sempre tiveram seus métodos de contextualizar-se no cosmo.
Os gregos também (até onde temos notícias) criaram, através de seus rituais, o método de se fazerem pertencer ao universo.
Pertencer ao universo é a interpretação que faço de qualquer fenômeno ritualístico.
Seguindo a ideia descrita no livro de Capra:
“Pertencer tem duplo sentido“.
Quando digo: “isto pertence a mim“, quero dizer que possuo alguma coisa.
Mas quando digo “eu pertenço”, não quero dizer com isso que alguma coisa me possui, mas que eu faço parte de, e estou intimamente envolvido com uma realidade maior que eu mesmo, seja um relacionamento de amor, uma comunidade, uma religião ou o universo.
Portanto “eu pertenço” significa “eu encontro aqui o meu lugar”.2
O “lugar” ao qual se refere Capra pode ser visto em quatro níveis.
O primeiro, refere-se ao indivíduo: “quem sou eu , o que faço aqui?”.
O segundo nível indica a situação social, ou seja, o que, dentro daquele grupo, pode ou não ser feito, quais as consequências dos atos etc.
Em suma, o que se indica é o conjunto moral de regras a serem seguidas para receber a aprovação daquele povo.
O terceiro nível tem a ver com a situação frente à imensidão do cosmo.
Basicamente responde à pergunta: qual é o sentido último da minha existência neste universo tão grande?
Por fim, como quarto nível, todo corpo mitológico conhecido tem uma explicação para a origem deste universo e sua evolução até aqui.3
Como é que os povos fizeram para comunicar a seus integrantes todos estes níveis de informação?
Claro está que não foi apenas contando as histórias de deuses e heróis.
Um recurso mais intenso é necessário quando o que se está buscando é auxiliar alguém a fazer uma passagem de um estágio a outro de existência.
A esse recurso chamamos ritual.
O ritual é um conjunto de ações estilizadas (porque não são um ato real, mas o representam) de alto impacto emocional, que abre espaço para uma reestruturação da postura do indivíduo (ou grupo de indivíduos) frente às suas relações (existenciais, sociais, cósmicas e transcendentes).
E atua tanto no nível mimético (imitativo, onde se representam ações como se fosse um deus ou um herói que as estivesse fazendo), como no simbólico (onde as ações indicam uma realidade mais rusticamente ligada ao ciclo vida-morte-renascimento).
Os ritos são portanto os conjuntos de ações efetuadas por ocasiões funerárias, festivas, nupciais, de nascimento e, ainda, referentes a competições e jogos, iniciações e passagens.
Então podemos,dizer que as informações contidas nos mitos são transmitidas e assimiladas através de atos rituais, que por sua vez dão uma dimensão
prática aos conhecimentos transmitidos mitologicamente.
Dão o suporte para que se possa fazer a passagem.
Mas, e o que são os mitos?
Pensemos em algumas das festas religiosas das quais todos temos conhecimento hoje: finados, carnaval, natal, paixão.
Parte delas possui procissões, outra parte possui choros, outras um clima de alegria geral.
No entanto, cada uma é um evento em si.
Enquanto representações, são formalmente iguais, ou seja, possuem uma estrutura que se mantém independente do contexto.
São tambem cíclicas, repetidas ano a ano (normalmente na mesma época e para comemorar o mesmo evento).
Cada uma é um ritual que conta e reconta uma estória.
Essa estória que vai sendo repetida é um mito.
Os mitos variam muito de conteúdo, relatam epopéias dos heróis, feitos divinos, a história de um povo, ou ainda a origem de tudo.
Da mesma maneira, os ritos antigos também existiram como veículo de seus próprios mitos (que por sua vez encontravam voz nos ritos que os representavam, formando um conjunto onde se torna impossíver dizer qual veio primeiro ou qual deu origem ao outro).
O mito seria então o conteúdo inseparável de uma forma ritualística.
As informações transmitidas a cada indivíduo de um grupo são mitos.
Vimos que existem quatro níveis de informação (existêncial-psicológico, social, cósmico e transcendente): os mitos trabalham normalmente em todos ao mesmo tempo.
Até hoje estes dois elementos foram estudados de forma autônoma, como se pouca ou nenhuma interação existisse entre eles.
A proposta que faço é que possamos ver a ambos como um conjunto indissociável, onde um serve para a compreensão do outro.
A essa concepção unitária chamo de conjunto MitoRito.
Ainda que existam mitos cujos rituais desapareceram e ritos que representam atos sem referência específica a mito nenhum, temos em grande parte dos casos indicações de que foram criados de forma complementar.
O mito contava uma história casada com uma representação mimético-simbólica do conteúdo.
Dizendo isso, chega a hora de pensarmos sobre o significado, nesse contexto, do conceito de catarse.
No ciclo vida-morte-renascimento, que todo ritual concretiza simbolicamente, um dos elementos constantes é a situação de passagem.
Conhecemos diversos exemplos de passagens: da infância à idade adulta, da paz à guerra, da vida à morte, da semente à colheita, e assim por diante.
No entanto para que possa realizar-se a transmutação, algo tem que ficar para trás, de algo há que se abrir mão; de algo tenho que ser limpo para que eu possa alcançar a iluminação, para que possamos ter boa colheita, para que minha morte seja a última de um ciclo infindável de reencarnações.
Essa passagem que tem portanto didaticamente dois momentos (o primeiro, de se livrar do que não serve, e o segundo, de acolher o que se busca), realiza-se com ajuda dos rituais que, simultaneamente ao ato de abandonar o passado, concedem nova identidade ao presente.
Catarse é o momento em que se diz adeus a uma forma de estar no mundo, para abraçar uma outra, de forma integral.
Não há volta ou “recaída” para o estado anterior.
Todos já experimentamos momentos na vida nos quais ficou presente a sensação de que não seria possível repetir o que havíamos feito até aquele momento, momentos em que, ainda que não soubessemos exatamente o que queríamos fazer (e a ausência da ritualização de passagem é um dos fatores desse estar perdido), possuíamos a clareza do que não desejávamos: o ato pretérito.
Para que a dimensão original de catarse seja recuperada é importante que se estabeleça uma diferenciação entre jogar fora e abrir mão.
Toda vez que utilizamos o sentido de purgante, estamos caracterizando como imprestável aquilo que tínhamos, e o ritual de adeus não é cumprido de modo completo.
Quando abrimos mão, estamos vivendo o processo de despedir-nos, no qual a despedida indica o valor e a dor que uma mudança implica, sem no entanto paralizá-la.
O ciclo ritual de transformação se completa.
Se no entanto o conjunto MitoRito não é vivido na sua completude, ao invés de abertura para a transformação podem ocorrrer dois fenômenos: ou se faz do rito e da passagem um sinônimo de sofrimento, na medida em que está ausente a dimensão de renascimento, após a perda; ou se faz dele uma prisão moralizadora e dogmática, que não fala mais ao coração, tendo-se transformado em uni conjunto de normas coercitivas e, com isso, tomado seus seguidores agentes policiais, o que indica uma ausência, no conjunto vivido, dos níveis psicológico e cosmológico.
Da mesma maneira, essa dissociação ocorre quando tiramos do seu significado original o termo catarse.
Pois hoje o utilizamos laicamente no sentido de purgante, aquilo que expulsa o que faz mal ou não tem mais utilidade, quando na verdade estamos falando de um processo muito mais complexo, onde a ênfase não se dá no que é perdido, mas no que se ganha de novo e transformador para a existência.
Porque o fato presente em todas as mitologias e nunca explicitado é que estas nos preparam para a vida, para lidarmos com cada um de nós, com as relações que travamos e com o cosmo.
Em suma, preparam-nos para viver e criar.
Vamos recapitular: o MitoRito é o meio que cada cultura encontra para efetuar as passagens de status de seus integrantes e do próprio grupo.
É também o modo de cada indivíduo participante da cultura encontrar seu lugar existencial, social e cósmico.
E a catarse é a parte de processo de passagem, em que uma nova forma de estar no mundo toma lugar de uma antiga, muito mais para ampliar o horizonte que para castrá-lo.
Etimologias
É importante dizer que a palavra catarse só foi criada após séculos de mitos e práticas rituais terem-se consolidado na Grécia (evidentemente que os outros povos viveram processo semelhante, chamando por outro nome o que os helenos nomearam catarse).
Ela aparece pela primeira vez no século VIII antes de Cristo, na Odisséia de Homero; aparecerá esporádicamente até o séc. V, quando terá uso mais corrente até ser incorporada ao vocabulário laico.
Katharsis, em grego, aparece pela primeira vez nos textos com um sentido estritamente religioso4.
Usado também nos rituais de iniciação para os Mistérios de Elêusis, significava o processo de transformação pelo qual o iniciado passava, para poder ver de frente a sabedoria professada (é comum a crença de que a contemplação da sabedoria sem estar preparado causa danos irremediáveis).
A origem da palavra vem do substantivo katharos, que significa sem mistura, livre de injustiça, puro.
Posteriormente, Hipócrates adaptou o termo para uso médico, e o utilizou com o sentido de limpar.
Platão, paralelamente, havia feito algo semelhante no âmbito da filosofia, na medida em que adicionou o sentido moral de alívio da alma àquilo que devia ser lavado.
Disto podemos apreender que houve um momento no qual a ação de purificar possuia outra conotação mais ampla que a de limpar a sujeira ou as feridas.
Este sentido se ligava diretamente a um contexto religioso, em que, para poder elevar-se, o indivíduo deveria deixar para trás o que o prendia a um estágio anterior.
A elevação espiritual é um dos temas constantes em qualquer conjunto RitoMito, e tem como fundamento a noção de que ao- contemplar os dramas cotidianos sob a ótica da eternidade (ou da sabedoria eterna), estes recuperam sua dimensão de efêmeros e transitórios.
Com isso, as passagens rituais seriam facilitadas e o novo status poderia atingir-se mais facilmente, visto que a dor pelas perdas seria minorada.
A diferença básica entre a concepção religiosa e a cotidiana, do termo catarse, é que na primeira se integram os elementos de vida do indivíduo, do grupo social, do universo como um todo.
Na segunda, sempre temos que achar algo para extirpar e excluir.
Se hoje usamos catarse no sentido de purgante, é devido a uma secularização do sentido primitivo, sofrida com o tempo.
Aristóteles e colaboradores
Nascido em 384 a.C., o pai da noção moderna de ciência ~sòmente pôde ver os espetáculos teatrais no contexto artístico. Isso porque até o fim do “século de ouro” (500 – 400 aC) todas as peças eram escritas, passando por um concurso, para uma apresentação única, em uma festa religiosa, comemorativa das colheitas por exemplo.
Não teve ele acesso de primeira mão quando as peças eram a atualização mitológica da população5 mas sim a reapresentações feitas já com uma noção dessacralizada e estética de espetáculo.
Com isso podemos situar o contexto do qual pôde partir Aristóteles para formular sua análise da estrutura e da função dos componentes dramáticos.
Vamos revisitar aqui, em especial, o que foi escrito sobre catarse.
Diz o texto da Poética :
“A tragédia é pois a imitação de uma ação elevada e completa (..) que com o recurso da piedade e terror logra a expurgação de tais paixões“6.
Só.
Isto significa que motivando a piedade e o terror na platéia, através das peças teatrais, se conseguiria extirpá-los das pessoas da platéia (por mais estranho que isto possa parecer, é exatamente este o sentido usual desta citação).
Até hoje não vi qualquer comentário à pertinência de extirpar emoções que estas linhas aristotélicas trazem, nenhum critico parece ter-se interessado em
investigar de onde teria o autor deduzido que esses sentimentos seriam expurgados através da tragédia, ou principalmente, do por que ser esta uma cias premissas que definem o que é um espetáculo trágico.
Somos obrigados a nos remeter ao conjunto de sua obra.
Nesta, a razão é sempre apresentada como o único recurso disponível ao ser humano para atingir a verdade.
É curioso que, tendo sido discípulo de Platão por vinte anos, tenha Aristóteles chegado a uma posição tão radical acerca do saber, relegando como falsos os conhecimentos obtidos por meio da poesia e da arte, caminho que seu mestre claramente venerava como religiosos saberes.
Na teoria aristotélica, apenas o que era passível de sistematização e catalogação podia ser confiável.
As paixões humanas evidentemente saíam desse limite e, por esse motivo, acredito terem sido incluídas as reflexões sobre a catarse na Poética.
Catarse já era então um sinônimo de purgante.
Era o livrar-se das paixões pelo impedimento que representavam para se alcançar o saber.
Por toda cultura latina, passando pelos filósofos e comentadores cristãos, chegando ao Renascimento e atingindo os séculos posteriores, o termo foi sendo revestido de um significado médico e, quando usado em contexto religioso, estava diretamente vinculado .ao conceito cristão de pecado.
Não cabe aqui uma compilação do pensamento cristão e do uso que foi dado ao conceito de catarse.
Basta dizer que não houve (como continua não havendo) meio termo entre o bem e o mal, e os pecados se situavam dentro da fronteira deste último.
Para a salvação da alma7 semente faria efeito uma completa limpeza (catarse) das máculas incrementadas durante a vida.
Na história do pensamento ocidental, esta diretriz também foi seguida por boa parte dos pensadores que trouxeram alguma influência.
Os cristãos, os renascentistas, Descartes, o positivismo.
A divisão dual (mente-corpo, bem-mal, certo-errado etc.) somada à impermeabilidade entre as partes, fêz com que o conhecimento se constituísse mais daquilo que se exclui do co/pus, do que das incorporações e transformações do saber tradicional.
Quando Freud aplica o conceito de catarse em suas obras, está dando o mesmo uso em outro ambiente, o da psiquê, a algo que durante 24 séculos havia sido transformado em sinônimo de laxante.
É com esse fundo que agora podemos ver o que Moreno aproveitou e do que se livrou ao tratar de catarse de integração.
Moreno
Vamos começar pelo Teatro da Espontaneidade. Diz Moreno:
“A inalação e a exalação dos pulmões é o símbolo da desinfecção.
Através da inspiração de oxigênio, o corpo é mantido vivo, mas através deste processo é precipitada a formação de óxido de carbono letal.
Contudo o veneno é removido do corpo através da expiração.
Pode-se dizer que, no processo de viver, inalamos a psiquê e a exalamos por meio do processo de espontaneidade.
Se no processo de inspiração desenvolverem-se venenos, tensões e conflitos, estes são removidos pela espontaneidade.” 8
Segue-se uma analogia da doença a ser extirpada pelo self espontâneo, e como o teatro da espontaneidade pode auxiliar na terapia mental.
O título do tema é Catarse mental e cura.
Não podemos esquecer a formação médica de Moreno, claramente evidenciada pelas metáforas usadas e pelo pensamento “cirúrgico”.
A epistemologia sobre a qual Moreno escrevia nesta época era a mesma que sustentou o pensamento ocidental e parte do oriental durante boa parte da história registrada, e pode ser compreendida como a oposição maniqueísta entre dois poios, onde um dos dois é sempre identificado como o prejuízo que deve ser excluído para que tudo fique bem.
Um outro texto9 onde Moreno volta a tratar do tema sob a mesma ótica diz:”(…)
O teatro muito antes de ser um local para representações de arte e diversões, foi um lugar para a terapêutica, procurado pelos doentes para catarse (destaque meu).
Da mesma maneira, o teatro moreniano estava montado para liberar os pacientes “dos conflitos trágicos, das emoções em que estão presos?“
O passado como grilhão do qual é necessário libertar-se para poder viver bem.
Se nos ativermos à epistemologia moreniana, à sua forma de ver o mundo, veremos que existe realmente a dimensão de conflito eterno entre o presente e o passado, este último chamado de conserva cultural.
Este conflito está também presente em todas as mitologias onde ocorre alguma mudança radical a nível social.
Um herói vem salvar o povo de dragões, serpentes e búfalos selvagens, ou ainda os filhos da Terra em conflito com o pai Céu para terem espaço de crescer e desenvolver-se.
Todos estes eventos mitológicos estão representando uma nova possibilidade, suplantando a antiga, e vale dizer que boa parte das lutas é ferrenha e violenta (castrações, amputações, desmembramentos e coisas do tipo são muito comuns).
O que não significa que o velho, depois de morto, seja jogado fora; ao contrário, ele adquire novo significado no contexto transformado pelo combate.
Os exemplos vão do pai Uranos que serve de céu após ter sido castrado por seus filhos, até o dragão Tiamat, com cujos pedaços o próprio mundo foi feito pelo herói polinésio Mauí .
Aquilo que foi ultrapassado (entenda-se: que teve a sua utilidade em algum tempo, mas que agora impede a continuidade dos avanços), é reincorporado ao novo sistema com um novo uso.
A diferença é que Moreno desperdiça (no sentido batesoniano de ecologia), não criando novos usos para as relações e comportamentos ultrapassados.
A epistemologia moreniana se mostra fundada na noção de incompatibilidade entre os tempos (passado com presente, com futuro) e, principalmente., divisão entre doença e saúde (mais à frente discorreremos sobre este tópico).
===================
É necessário porém, e com muita ênfase, destacar a grande inovação que Moreno apontou.
A catarse de integração não se realiza no indivíduo ou de forma individual, mas no grupo. 10
Isto é de extrema importância para compreender algo que também ocorria no ritual grego: o grupo vivenciava uma experiência coletivamente, não sendo apenas o sacerdote ou o sacrificado aqueles que sofriam os efeitos transformadores.
Ao processo vivido individualmente teríamos que chamar por outro nome.
A catarse de integração aponta para uma experiência coletiva de transformação.
A coletividade pode começar pela díade terapeuta-cliente, e terminar com os grandes grupos, e ainda que cada indivídu. o viva a transformação de uma maneira singular, todos passam por ela.
Isto aponta para a conclusão de que simultâneamente a uma integração psíquica do indivíduo (o que não é objeto de estudo do psicodrama e portanto não pode ser avaliado por este), ocorreria uma integração do grupo que participasse do evento ritual.
Outra colocação moreniana que necessita ser reavaliada é a de que no teatro espontâneo, a catarse ocorreria no ator, e não no espectador.
Ora, se o ator central do teatro espontâneo se chama protagonista, e se ele é o porta-voz do grupo, nada mais evidente que a catarse só poder ocorrer simultâneamente no ator e na platéia (até porque o sub-sistema no contexto dramático só tem sentido na relação com o sistema grupal).
Isto nos obriga a descartar a afirmação de Moreno (feita para diferenciar os teatros convencional e espontâneo), em favor de uma outra que visualize a catarse do ator como indício da catarse que ocorre junto com o grupo representado por ele, esta sim uma diferenciação em relação à perspectiva aristotélica de teatro.
Não é novidade este tipo de incongruência nos textos morenianos. 11
Ao lado de uma idéia com fundamentação epistemológica sistêmica (a catarse ocorrendo no grupal), uma colocação individualista (a catarse ocorrendo em atores do grupo e não na platéia do mesmo grupo).
Certamente temos que definir qual das posturas é mais coerente com a proposta moreniana global, e dentro do possível adequar as restantes a um corpus teórico-prático.
Tudo ao mesmo tempo: agora 12
Vimos até agora o quadro histórico no qual Moreno se incluiu.
Seguindo um estilo de abrir muitas trilhas e não fechar nenhuma, legou-nos uma série de escritos apontando para diversas direções, nem sempre coerentes entre si. Uma das nossas tarefas é definir qual das sendas tomar.
Uma das alternativas é a de rejeitar a dualidade de doença e cura utilizada até então, substituindo-a por uma noção integrativa de desequilíbrio.
Este pensamento (que se remete diretamente à medicina e filosofias orientais e que agora está ganhando terreno a partir das concepções holísticas e ecológicas do homem e do universo), não visa simplesmente trocar os nomes para seguir dizendo o mesmo, mas sim trabalhar a partir de uma concepção distinta da atual.
Isso inclui começar a atuar nas relações terapêuticas com um objetivo distinto de “cortar o mal pela raiz”.
Ao invés disso teríamos de lidar com a dor como indício de um desequilíbrio muito mais amplo que o sintoma (que antes se desejava purgar). 13
Esta “nova” concepção tem a ver com a unidade do todo.
Tal idéia, ainda que não possua qualquer inovação aos que estão familiarizados com o pensamento contemporâneo ou o oriental, é absolutamente incompatível com o cotidiano terapêutico que vemos hoje em dia, normalmente derivado da experiência médica tradicional, que por sua vez se ancora no edifício positivista-cartesiano de pensamento.
Segundo esta tradição, as partes são separáveis e compreensíveis enquanto partes, sendo possível a separação e o estudo de elementos do todo sem que isso modifique o sentido e o funcionamento do organismo.
Já uma concepção holística percebe que o passado, o presente e o futuro de um homem, e do grupo ao qual este pertence, são uma só coisa, e que portanto a compreensão de qualquer fenômeno só pode ser completa no âmbito das relações que as partes (apenas separáveis a nível didático) têm entre si.
E é como desarmonia que podemos ver as queixas de nossos clientes, e a partir disso agir em prol de harmonizá-los ao seu presente (o tão falado aqui-e-agora).
Não é isso que buscamos fazer através da terapia, arte ou religião?
Dessa forma, deixamos de ser os curadores de doenças para assumirmos o papel de transformadores.
Não há mais males a serem extirpados.
Ao invés destes, temos sistemas desequilibrados de forma global, onde o sintoma apenas indica qual o elo mais visível de uma rede em desarmonia.
E se é possível pensar a queixa-sintoma de nossos clientes a partir dessa perspectiva, por que não ampliá-la e conceber o sintoma como desarmonia do grupo referente do sujeito?
Isto (que é lugar-comum nos escritos psicodrarnáticos), seria só a primeira parte de uma tarefa mais ambiciosa, que seria o criar possibilidades para uma catarse de integração do macro-grupo, transformando o sistema global de modo a não ser mais necessária a exclusão de elementos (ou a sua
identificação como a fonte dos problemas) para a obtenção de um equilíbrio.
Para terminar, gostaria de retomar nossa discussão sobre catarse.
Não tenho dúvida de que continuaremos a utilizar esta denominação para falar do evento transformador que presenciamos e de que participamos nas nossas atividades, assim como chamamos de psicodrama o que teria por nome socionomia (enquanto denominação geral do método/teoria moreniana), e não há mostras de que isto mude.
No entanto, poderíamos divertir-nos um pouco após este trajeto se soubéssemos que Aristóteles em sua Poética utilizou o termo anagnórisis para descrever o momento chave onde um personagem, como Édipo, reconhece a realidade (que o inclui) à qual estivera cego até então.
Não se trata de purgar um passado, mas de ser quase que ofuscado pelo conhecimento global repentino de toda uma realidade de relações, fantasias e forças que eram ignoradas até então.
Anagnórise é o reconhecimento que me toma de cima até embaixo – como uma iluminação divina – e que abre radicalmente uma nova perspectiva para minha vida, algo que eu jamais vou poder esquecer ou passar por cima, é a transformação do homem pela compreensão profunda de sua natureza e da natureza da vida, da sociedade e das leis do cosmo.
Assim como catarse, anagnórise é um termo do vocabulário religioso.
Talvez este dado indique a necessidade de retomarmos o sentido mais amplo da atuação que nós, como sacerdotes contemporâneos de rituais criativos, temos que assumir.
- José Palo Paes – Poemas Socráticos – Folha de São Paulo, 8/11/94 ↩︎
- Capra ,F.: Pertencendo ao universo. S.Paulo, Ed. Cultrix, 1993. Pg 27 ↩︎
- Para uma discussão completa do aspecto existencial do ritual ver: Campbell, J.: Las máscaras de Diós – Vol. 4: Mitologia creativa. Madrid, Alianza Editorial,1990. ↩︎
- Para nosso trajeto etimológico utilizaremos Bailly, A.: Diccionaire Grec-Françaike. Hachette,Paris,1950; e Liddell-Scott: Oxford Greek-English Lexicon. Oxford Press, Londres, 1947. ↩︎
- O tema atualização mitológica renderá no futuro outro texto, dada a extensão que implica. Basicamente significa que um mito só é válido quando atualiza a dimensão existencial, espiritual e social do grupo a que se refere e, por essa atualização (que tem jogo dialético com o momento do grupo), é reconhecido como válido e verdadeiro pela comunidade representada. ↩︎
- Aristóteles: Poética , 1426b. Barcelona ,Editorial Bosch, 1985. ↩︎
- É verdade que arrepender-se dos pecados era apresentado pelo próprio Cristo como um dos caminhos para alcançar a graça divina, o que é uma forma muito interessante de retomar o sentido religioso arcaico de catarse. No entanto, a instituição igreja cristã acabou por distorcer este e outros conteúdos para formas mais maniqueístas e incompatíveis. O sentido de catarse que nos chegou evidentemente não é o da palavra de Cristo. ↩︎
- Moreno, J. L.: Teatro da Espontaneidade . Summus, São Paulo, 1985 Pgs 99 – 100 ↩︎
- Moreno, J.L.: Psicodrama . Cultrix, S.Paulo ,1987. Pgs 233 – 234. ↩︎
- Moreno, J.L.: Psicoterapia de Grupo e Psicodrama. Mestre Jou, São Paulo, 1974. Pg. 109. ↩︎
- Ver, por exemplo, o artigo ‘Moreno e seu tempo” de Alfredo Naffah Neto (in: Aguiar, M. (org.): O psicodramaturgo. Casa do Psicólogo, São Paulo , 1989 ), onde ocorre uma deliciosa discussão entre os lados “gênio”e “charlatão”de Moreno em seus escritos. ↩︎
- Uma coisa de cada vez/tudo ao mesmo tempo agora, Arnaldo Antunes, 1993. ↩︎
- Basicamente a medicina e o pensamento orientais concebem qualquer doença como desequilíbrio das relações entre os elementos constitutivos (madeira, metal, fogo, água e ar, que também são os componentes do universo). Ressalto que não é desequilíbrio do elemento, mas entre estes. Nesta perspectiva, extirpar, purgar ou qualquer ato visando à remoção do foco estaria irremediavelmente obrigando o organismo a encontrar um equilíbrio incompleto (pela falta de parte do conjunto). ↩︎
Leituras 09: Catarse de integração: uma pequena viagem etimológico-existencial
Tiragem desta edição (maio de 1995): 1200 exemplares
Coordenação Geral: Moysés Aguiar / Antonio Ferrara
Uma reedição para o computador de Leituras da Companhia do Teatro Espontâneo.