Leituras extra: Psicodrama e arte
Luiz Contro
É conhecida a história do psicodrama, protagonizada em seu início por Moreno. Uma proposta de um novo teatro, não mais de entretenimento, mas de representação da própria vida, em consonância com o teatro dito moderno, proposto por Artaud, Brecht, Pirandello, Stanislavsky e outros, cujas idéias fervilhavam na Viena dos anos vinte deste século 1. A proposta de um teatro inovador caminha então para um reconhecimento na esfera da alternativa terapêutica, buscando status de ciência, com o desenvolvimento da sociometria. Faz-se notório, portanto, um paralelo antigo entre psicodrama e teatro.
E com a arte em geral, como se dá uma articulação ? É também sabido que desde os tempos mais remotos o homem representa simbolicamente seus sentimentos, realidades, espectativas, sonhos, através de desenhos, pinturas e rituais: através de seu mundo imaginário. Os deuses criados pelos helênicos demonstram a necessidade de expressar a intensidade da vida através deste “artístico mundo intermediário dos olímpicos”2. Um mundo outro que não o cotidiano concreto. O mundo do deus Dioniso, da embriaguez, do delírio. Uma instintiva sabedoria expressa pelas imagens.
A arte, expressão estética3 deste mundo outro (mundo outro como expressão didática pois realidade e fantasia se entrelaçam na existência humana), coloca-se na realidade como suplemento para sua superação, no entender de Nietzsche4. O psicodrama também cria um mundo outro, proporcionado pela estruturação do contexto dramático, estrutura esta que caracteriza-se por “uma narrativa com composicão de fatos, presentificação de sentimentos, questionamento da trama, tudo isso a provocar um compromentimento emocional dos participantes”. 5 Os enredos e personagens são a estética produzida na criação improvisada, alicerçada nesta estrutura.
Ao diretor cabe organizar tal estrutura, no que traz o elemento apolíneo, para que o dionisíaco protagônico possa se evidenciar. Viabiliza-se então o exercício das potencialidades do ato criador, propiciando tais potências ao cotidiano, idéia sobre a qual me deterei a seguir.
Este mundo outro que se cria neste contexto apropriado, tem uma denominação interessante : realidade suplementar. “Realidade adicional”6 , “verdade poética e psicodramática7 , “interpretação subjetiva da realidade”8, são tentativas de delineamento de tal conceito, junto a outras levantadas por Perazzo9 : “realidade sobressalente”, “realidade alargada pluridimensional”, “dimensão invisível da realidade, que se revela para o sujeito na própria ação dramática, … que ele incorpora, passando a deixar que ela flua criativamente, a partir daí, como uma nova verdade, em seus papéis sociais na sua relação com o mundo”, definição esta do próprio Perazzo. Realização simbólica, símbolos, imaginação, imaginário, função psicodramática, encenação do desejos , são alguns entre tantos outros conceitos relacionados ao conceito de realidade suplementar, citados por esse autor. Soliani6 a denomina como “a realidade da representação psicodramática” e cita Moreno quando este define “o conjunto das dimensões invisíveis da realidade, da vida intra e extra psíquica” .
Parece-me que pelas proximidades tantas de definição e correlação, a idéia de realidade suplementar é de uma categoria genérica de representação virtual, produzida, quando na especificidade da metodologia psicodramática, no contexto dramático, onde é possível estar presente todos estes conceitos acima relatados e mais uma lista infindável de outros, tantos quanto se produzam nas relações humanas10 .
Deparamo-nos então com uma convergência entre o que Nietzsche entendeu por arte, como sendo um suplemento à realidade, e a concepção moreniana de realidade suplementar. Tal convergência se dá pela idéia de suplemento : “o que serve para suprir, suprimento …, parte que se adiciona a um todo para ampliá-lo, esclarecê-lo e aperfeiçoá-lo”11 .
Esse entendimento do que seja arte não está portanto convergindo simplesmente para um conceito moreniano, ou vice-versa, mas para um conceito que traz em seu bojo um para que: suprir, aperfeiçoar, ampliar o cotidiano, a realidade dita concreta.
Mas, como se dá tal suplementaridade ?
Em que se baseia a idéia de que a realidade suplementar, produzida no contexto dramático, suplementa as relações no contexto social ?
Neste momento, vejo a necessidade de lançar mão da concepção de co-criação, concepção esta inerente, como veremos, à idéia de realidade suplementar.
Façamos um simples encadeamento de significações : criar é “dar existência a, dar origem a, gerar, formar “12 .
Fiquemos com o sentido de formar. Formar pode ser compreendido como dar forma.
Criar, portanto, significa dar forma.
Necessitamos agora de um outro conceito moreniano para continuar nosso encadeamento: conserva cultural.
Ele nos dá a referência de que o homem deve superá-la, usando-a como trampolim para uma forma outra que não aquela que torna-se muitas vezes repetitiva e aprisionadora.
O movimento para além da forma estabelecida é designado pelo termo transformar.
A proposta moreniana é portanto de uma criação transformadora.
Acontece que esta mesma proposta enfatiza o criar em ação dramática, na relação entre personagens que encarnem o conflito pesquisado, ou seja, em atos de co-criação.
Co-criação, portanto, implica necessariamente em transformação e se dá na ação dramática, construindo a realidade suplementar.13
Daí a inerência existente entre realidade suplementar e co-criação.
Faltam-nos ainda alguns passos para respondermos nossa questão de como se dá, pelo psicodrama, a suplementaridade ao contexto social.
Moreno sempre esteve atento para “apresentar métodos de psicoterapia que estejam mais próximos da vida mesma”14 . Preocupava-se em não ser levado pela artificialidade dos experimentos, substituindo-os “por situações naturais que se apresentam na vida cotidiana”15.
Haja vista que um dos argumentos que se levantam para a contribuição do trabalho grupai é que o grupo constitui-se numa micro-realidade.
Sua atitude no entanto foi de viabilizar um contexto propício a que os aspectos imaginários fossem estimulados.
Contradição ? Não, perspicácia !
Moreno tinha a compreensão da co-existência entre as duas realidades na vivência do contexto dramático : “o espaço cênico oferece à vida possibilidades de extensão que o original real da própria vida não possui.
A realidade e a fantasia aqui já não estão em conflito; uma e outra participam de uma cena mais ampla: o mundo psicodramático dos objetos, das pessoas e dos acontecimentos”16 .
Sabemos que a vida cotidiana não se resume à concretude aparente, ou seja, aqui também co-existem as duas realidades, ora conflituosamente, ora não.
Co-existência essa que traz embutida uma contraposição, pois a concepção de realidade existe ao se contrapor à concepção de fantasia e vice-versa.
Portanto, realidade suplementar e realidade concreta, por co-existirem e simultaneamente terem o movimento de se contrapor, articulam-se, existindo uma em função da outra.
Qualquer mudança num ponto deste sistema provocará, então, transformação nos outros constituintes.
Na especificidade da proposta psicodramática, podemos afirmar, assim, que no movimento para além das formas estabelecidas, ou seja, no movimento de transformação, proporcionado pelo ato de co-criar no contexto dramático, temos a reverberação simultânea dos contextos social e grupal, indissociáveis que são do primeiro.
Temos aqui a suplementaridade se dando, pela vitalidade introduzida por uma realidade virtual, co-existente e encarnada.
A realidade suplementar está inserida num ciclo dinâmico que, ao suplementar a realidade cotidiana, cria um novo instante de conserva, que persistirá enquanto responder às necessidades dos projetos dramáticos17 estabelecidos. A noção de movimento, neste processo, é fundamental.
Deleuze diz que “a vida como um movimento aliena-se na forma material que ela suscita; atualizando-se, diferenciando-se, ela perde ‘contato’ com o que resta dela mesma” …18 .
Bergson aponta-nos uma saída quando, no dizer de Naffah, “postula o ser humano como constituindo a única espécie viva capaz de retomar o movimento criador”.
Aqui temos o homem deus criador moreniano. O ato de criar, na medida em que retoma o movimento da vida, explicita a realidade à qual pertence, durante o próprio ato. Neste movimento, suplementa e transforma.
A arte, por sua vez, encontra variadas formas de instrumentalizar a metáfora.
O filme, a poesia, a escultura, a pintura, têm seus contextos próprios, suas estruturas que possibilitam a criação e a suplementaridade visualizada por Nietzsche.
A resposta dada, no presente texto, à questão de como se dá tal fenômeno, igualmente visualizado por Moreno, serve ao domínio da arte pois aqui também realidade e fantasia co-existem na interdependência.
Uma diferença conhecida é o foco que o psicodrama dá no processo enquanto que a arte muitas vezes o localiza no produto.
A concepção moreniana de “conserva cultural a ser superada” faz a diferença, no nosso encadeamento de significações, para se chegar ao elo transformação, articulado necessariamente à criação.
Quando no referencial da arte em geral, encontramos o foco no processo na arte-educação (arte infantil + pedagogia), nas propostas de arte-terapia e de teatros vários de improviso, por exemplo.
Aqui também a transformação é inerente.
Quando o foco da produção artística é no produto, o objetivo transformação nem sempre é buscado como fim, embora sempre se transforme o artista, mesmo que isolado, no processo de criação.
O psicodrama, mais claramente, busca a transformação das relações enformadas, estereotipadas. em formas outras que possibilitem escolhas, movimento.
Dentre as várias possibilidades de um “para que” da arte, busco a que transfigura, desloca, desconstrói para construir.
É desta arte e psicodrama de onde falo.
Em todos os espaços onde se possibilite a ruptura do previamente estabelecido, tendo o movimento como significado de pulsação.
E assim, proporcionar ângulos inusitados, iluminação experimental, impostações de voz diferenciadas, misturas de tintas e impressões.
Dissonantes acordes e formas em vir a ser.
Viabilizar novas perspectivas. Eis uma correlação de vitalidade existente entre as duas propostas.
Colocar-se fora do senso comum ocasiona outras visões, permite novas significações.
O homem moreniano faz-se assim essencialmente artista.
LUIZ CONTRO Psicólogo, psicodramatista e terapeuta de alunos pelo IPPGC e Companhia de Teatro Espontâneo – Escola de Psicodrama de Tietê
- CONTRO, Luiz – “Veias psicodramáticas de um coral cênico” – Trabalho de conclusão de curso – Instituto de Psicodrama e Psicoterapia de Grupo de Campinas – 1992. Não publicado. ↩︎
- NIETZSCHE, F. W. – “O nascimento da tragédia no espírito da música”, em Obras Incompletas, série – “Os pensadores” – 3a ed. , S.Paulo, Abril Cultural, 1983, pág. 7. ↩︎
- HOLANDA, A. B. – “Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa”, 2a ed., Rio de Janeiro, Nova Fronteira, pág. 720. Tomo aqui a definição de estética emprestada da filosofia: “estudo das condições e dos efeitos da criação artística”, semelhante à idéia de criaturgia em Moreno. ↩︎
- Cf. (2) – pág. 20. ↩︎
- FALIVENE, Luis – “As funções da ação e da palavra no Psicodrama”. Textoapresentado em mesa redonda na Sociedade de Psicodrama de São Paulo. Não publicado. Pág. 3. ↩︎
- MORENO, J. L. – “Psicoterapia de grupo e Psicodrama”, S. Paulo, Mestre Jou, 1974, pág. 22 1 MARINEAU, R. F. – “Jacob Levy Moreno”, S.Paulo, Ágora, 1992, págs. 20 à 24 e pág. 168. ↩︎
- Cf. (7) – pág. 181. ↩︎
- PERAZZO, S. – “Realidade suplementar”, texto apresentado no IX Congresso Brasileiro de Psicodrama – Águas de São Pedro, SP, 1994. Não publicado. ↩︎
- GONÇALVES, C. S. – “O que quer dizer realidade suplementar”, texto apresentado no IX Congresso Brasileiro de Psicodrama – Águas de São Pedro, SP, 1994. Não publicado. Pág. 1. ↩︎
- SOLIANI, M. L. C. – “Realização simbólica e realidade suplementar”, em Monteiro, R.F. (org.): “Técnicas fundamentais do Psicodrama”, S.Paulo, Brasiliense, 1993, pág. 76. ↩︎
- Considerar a possibilidade de existência destes conceitos numa categoria mais genérica não elimina a utilidade de uma distinção entre eles, pois não se trata de sinônimos mas de conceituações de representações virtuais, com características peculiares, sobre as quais não nos deteremos no presente texto. ↩︎
- Logicamente, estamos falando de um corte num ponto específico do processo, que se inicia com um aquecimento, atingindo seus pontos ápices na instauração da realidade suplementar pela co-criação, quando em grupo, e pela co-criação quando num trabalho bi-pessoal. Cf. (3), pág. 1631 e Cf. (3) , pág. 498. ↩︎
- MARTIN, E. G. – “J. L. Moreno: psicologia do encontro”, S. Paulo, Duas Cidades, 1984, pág. 90. ↩︎
- Cf. (17) , pág. 91. ↩︎
- Cf. (17), pág. 93. ↩︎
- O conceito de projeto dramático, desenvolvido por Moysés Aguiar, é muitas vezes interpretado em sua parcialidade, sendo relacionado exclusivamente ao projeto para a produção do enredo pelos participantes do evento psicodramático. Esta é uma das possibilidades. Partindo da noção do critério de escolha para a realização do teste sociométrico, Moysés Aguiar faz uma ampliação deste conceito, utilizando a denominação projeto dramático para uma leitura socionômica dos fenômenos onde se articulam forças de atração e repulsão, presentes nas relações .que se estabelecem em função de uma tarefa comum, ampliação esta que se estende até o contexto social. (Ver: “As diferentes focalizações na prática do psicodrama”, em Petrilli, S.R.A. (org.): “Rosa-dos-ventos da teoria do psicodrama”, S.Paulo, Ágora,1994, pág. 61). ↩︎
- NAFFAH NETTO, A. – “Psicodrama – descolonizando o imaginário”, S.Paulo, Brasiliense, 1979, pág. 74. ↩︎
- Cf. (20), pág. 74. ↩︎